Para
além de verdades metafísicas, crenças e descrenças, proponho aqui uma análise
do conceito de “deus” na comunicação cotidiana. Afinal, independente da
religião, essa ideia carrega significados calcados pela cultura, pelo uso e
pelo senso comum.
Quando
alguém diz “meu deus!”, não é preciso perguntar que igreja a pessoa frequenta
para entender seu sentido; quando
expressa “se deus quiser”, não quer dizer que ignore todas as causalidades e
somente espere algo de um ente sobrenatural em que acredite. Muitas vezes, não
quer dizer nem que acredite em ente sobrenatural nenhum.
A
língua tem vida própria. Ela carrega consigo os significados que percebemos
enquanto vivemos, mesmo que nunca tenhamos pegado em um dicionário para
procurar as definições precisas das palavras. Por mais que alguns as evitem,
expressões que contêm “deus” estão incorporadas à língua. O que buscarei
argumentar é que essas expressões não só servem para expressar muito mais do
que uma crença teísta, mas podem estar desvinculadas dela, e considero essa
distinção fundamental para combater alguns preconceitos.
À
primeira vista pode parecer estranho desvincular expressões com “deus” de
religiões. Compreensível, a partir do momento em que a crença em deus(es) é o
cerne da maioria delas. No entanto, basta um pouco mais de atenção para notar
diferenças entre as expressões diárias e uma entidade cultuada por fiéis.
Comecemos
por analisar alguns aspectos do deus como entidade sobrenatural: concluir o que
ou quem é deus para uma igreja requer estudo, discussão e consultas a
documentos fundamentais da sua história – coisa que leva tempo e atenção. Esse
deus (ou deuses, no caso de religiões politeístas) seria algo exterior e
anterior ao homem, não sendo possível, portanto, que a sua definição varie de
pessoa para pessoa – a não ser que estejamos falando de alguma espécie de deus
camaleão.
Em
geral, existe uma definição, dada pela instituição religiosa que o cultua,
sobre o que é esse deus. Mesmo que às vezes seja necessário estudar documentos,
rever conceitos e discutir convenções, essa definição não é maleável à
imaginação de cada um que se refere a ele, ou então ele não é exterior, e sim
fruto da imaginação de cada um. Quando surge polêmica em torno do que é a
entidade, aqueles identificados como qualificados para tal se reúnem, discutem,
estudam e tentam chegar a uma conclusão. Quando existe dificuldade de
entendimento sobre o que é esse deus, é necessário consultar guias, documentos
e outros elementos da religião que permitam uma melhor compreensão.
Já o “deus”
das expressões cotidianas não exige estudo religioso para entender o que
significa dentro das expressões que a contém. Mesmo ateus e agnósticos sabem e
chegam a utilizar expressões como “ai meu deus” ou “graças a deus” sem precisar
discutir a definição disso com ninguém. Mesmo que um umbandista esteja falando
com um evangélico, o significado de “ai meu deus” não precisa ser debatido para
ser compreendido.
Também diferente do deus da religião, não
falamos aqui da evocação de um ente exterior ao homem e não sujeito a variações
individuais. As expressões são utilizadas livremente, por qualquer pessoa, variando
de acordo com o contexto. É possível, por exemplo, que uma pessoa diga que
“graças a deus a festa acabou” e que outra diga “graças a deus a festa
continuou”, sobre a mesma festa, sem entrar em conflito sobre o que algum deus
realmente quis a respeito da festa em questão.
É,
portanto, uma ideia que expressa o que o interlocutor está querendo dizer, não
a suposta vontade de uma entidade exterior. Outra vez na direção oposta do
deus-entidade, não há longas discussões acerca da existência ou da natureza do
deus presente nessas frases, e ninguém parece realmente se interessar em entrar
nessa questão. No fundo, não é a natureza da palavra que dá o sentido ao que se
está expressando; é a expressão como um todo.
Tenho
consciência de que uma análise mais adequada poderia ser feita por um
linguista, com as ferramentas e métodos adequados para explicar essas
diferenças. Mas tenho consciência também de que primeiro é necessário
apresentar a questão e então torcer para que estudiosos da língua sem intenção
de favorecimento religioso vão mais a fundo nela.
Sobre o
deus-entidade já temos bastante fórum, instituições e mesmo faculdades para
dissecar a questão. O segundo (o deus-conceito) é que me parece precisar de um
pouco mais de luz, inclusive para parar de ser usado como argumento de
discussões metafísicas imaturas. Assim, olhemos um pouco mais de perto algumas
expressões populares, que podem nos dar pistas do que esse conceito diz:
“Deus
me livre”, “se deus quiser”, “graças a deus”, “vá com deus” ou “ai meu deus”:
são todos termos que contém uma conotação positiva, uma subjetividade carregada
de valor, seja o desejo de livrar-se de algum mal, uma esperança de que algo
bom aconteça, uma sensação de satisfação ou a busca de apoio em algo além de
si. Essas ideias podem transmitir a ideia de que quem está conectado a “deus”
tem boas intenções, espera coisas boas, evita as ruins. Poderíamos dizer,
então, que a palavra “deus” vinculada ao senso comum ajuda a expressar
sentimentos como esperança, solidariedade e proteção.
Outro
fenômeno bastante particular do uso do conceito no cotidiano são as atribuições
de autoria. Quando alguém conclui que “deus” quis alguma coisa, não quer dizer
que essa pessoa tenha parado, rezado e consultado alguém sobre isso. Quando
alguém diz que “deus” quis algo, essa é uma dedução própria, instantânea. No
mais das vezes, as pessoas atribuem a esse “deus” desejos, decisões,
acontecimentos e resultados para o que elas próprias veem, analisam e concluem.
Só que buscam manter a conotação valorativa da ideia, a relação com o que o
conceito exprime: solidariedade, conforto, proteção e bons sentimentos.
Aparentemente,
o significado que o senso comum atribui à palavra é muito mais preservado do
que a coerência com alguma crença religiosa. Se uma pessoa morre, “foi a
vontade de deus”; se uma pessoa vive, “foi graças a deus”; se eu não tenho
certeza de algo, mas quero que aconteça, “se deus quiser”. São conclusões
automáticas, respostas prontas a situações que se repetem. Ninguém consulta a
vontade de algum ser sobrenatural antes de dizer. Cada um diz quando considera
adequado ao uso da palavra, ao deus-conceito.
Tamanho
é o entendimento coletivo de que esse conceito carrega valores humanitários que
muitas pessoas, mesmo crentes, rejeitam definições religiosas que não concordam
com esses conceitos cotidianos. Sem dar-se conta, elas criam “seu deus
particular” a partir do senso comum, podendo atribuir-lhe posteriormente uma
forma sobrenatural, ou buscá-la na religião. Nesse ponto, em que ambas as
concepções se confundem, é fortalecida a crença religiosa, emprestando força
dos valores cotidianos; e os rituais religiosos repetitivos e atemorizantes
reforçam a crença “interior”, que na verdade é mais uma ideia interiorizada da
linguagem e dos conceitos populares.
Uma
forma de perceber como esses conceitos são desvinculados é observar situações
em que eles divergem em sentido. Se um líder espiritual conclui, a partir de
leituras e estudos, que seu deus tem aspectos não humanitários, é muito
provável que os fiéis rejeitem a definição dele antes de mudar a “sua”
concepção sobre deus. Se alguém mostra a um cristão que a Bíblia contém
passagens descrevendo a crueldade divina, diversos argumentos serão construídos
para negar o que lhes parece uma contradição: “seu” deus sendo amor, bem, paz,
solidariedade, há algo errado com essa interpretação da Bíblia. No limite, há
algo errado com a Bíblia, mas nunca com o que se pensa desse deus. Porque antes
desse deus ser o deus da Bíblia, ele é o do senso comum, o dos valores
cotidianos, o da consciência coletiva. Esse é mais forte. Forte a ponto de
fazer com que a pessoa negue definições embasadas nos próprios textos
religiosos.
O IBGE
não se aprofunda, em suas divulgações, na questão do quanto as pessoas mudam de
igreja, mas creio que o número de igrejas diferentes dentro da mesma religião
seja um bom indicativo de como o aspecto mais permanente da crença não tem
origem na igreja, sendo mais provável que dê origem a ela. Como estamos
tratando do senso comum brasileiro, indicarei a multiplicidade de linhas dentro
da religião cristã, que teve peso extraordinário na formação cultural — e conceitual
— brasileira. Um estudo mais aprofundado poderia analisar o impacto de outras
religiões nessa concepção, mas sua força numérica e sua influência na educação
não se comparam à primeira.
Encontramos
dentro do cristianismo quatro denominações: a igreja católica romana, a
ortodoxa, o Cristianismo
Exotérico e os
protestantes. Na igreja católica, que preza bastante pela unicidade e
pelo número de fiéis registrados sob seu título, existem congregações com
características muito diversas, muitas vezes opostas, como uma que paga
salários aos padres e outra em que eles fazem voto de pobreza. Existem
movimentos e correntes de pensamento que em muitos aspectos diferem mais entre
si do que de outras denominações cristãs, como a Renovação Carismática em
relação à Teologia da Libertação, por exemplo.
Já na
denominação identificada como “protestante”, é sabido que novas igrejas são
abertas muito frequentemente, mas o controle de quais e quantas são criadas
parece não ser tão claro para classificar. Ainda assim, uma consulta básica à
Wikipédia retorna mais de 70
igrejas sob essa
denominação, o que certamente não abarca todas as portinhas que se abrem com
nomes diferentes em nome dessa denominação religiosa.
Se o
deus cristão é um só, a diversidade de igrejas sob essa religião indica que
outros elementos têm grande importância na auto identificação da pessoa com uma
igreja. Apesar de desconhecer um estudo sobre isso, não é difícil notar que
muitas pessoas se desligam de igrejas ou mudam de denominação, mas afirmam sem
pestanejar que mantém a crença em “seu deus”. Isso acontece bastante quando a
linha de uma igreja é identificada pelo fiel como incoerente com seus valores,
sua moral… Seu deus, em última instância.
Outro
fato notável que reforça a secularidade do conceito é como ele é utilizado por
famílias para resumir o que se espera de alguém. “Deus fica triste com isso”,
“deus gosta daquilo”, “deus está vendo”, “deus sabe” são expressões muito
usadas para moldar o caráter de uma criança, guiá-la no sentido que a família
considera adequado. Os valores da família são transmitidos por meio da alusão a
uma entidade sobrenatural que, teoricamente, concorda com todos eles.
“Milagrosamente”, esse deus concorda com a visão de mundo de milhões de
famílias com visões de mundo diferentes!
Ao deparar-se
com uma igreja que vai contra seus valores familiares, quem perde é a igreja.
Se essa instituição transmite a ideia de que deus é algo identificado como ruim
no que se aprendeu em casa, o que é taxado como ruim é ela, jamais deus, pois
independente dos comportamentos ensinados, a ideia de “deus” é a referência
para o que é bom, certo, desejável – de acordo consigo mesmo, de acordo com o
que se aprendeu em casa ou se desenvolveu posteriormente – é uma ideia plástica
também.
É isso
o que se aprende com a linguagem, é isso o que as interações sociais reafirmam
a cada uso da palavra e acredito que, no fundo, é isso o que mais importa às
pessoas. Isso, no entanto, faz com que seja muito difícil para uma pessoa que
crê em um deus-entidade separar religião de moral. Na medida em que a pessoa
não faz a distinção entre deus-entidade (religião) e deus-conceito (opinião),
ela acredita que o deus-entidade é a fonte primeira de tudo o que é positivo, e
que nenhuma distinção entre metafísica e moralidade parece necessária. Um leva
ao outro e se confunde com ele.
O
problema dessa não dissociação é que a partir do momento em que uma pessoa se
declara ateia, ela pode ser automaticamente vista como contrária não apenas à
crença em uma divindade, mas também a esses nobres sentimentos que carregam seu
nome: proteção, esperança, solidariedade e mesmo o amor – “coisa de deus”. E
isso acontece muito. Se não há a dissociação entre a ideia de bem e a ideia de
deus, quem “nega a deus” é identificado como quem nega qualquer referência que
a pessoa tenha de bem. Não espanta, assim, a aceitação por um grande público
das afirmações do
apresentador Datena relacionando
ateísmo a criminalidade. Mesmo que a maioria das pessoas nunca tenha tido
problema algum com ateus, elas se sentem qualificadas para julgá-los a partir
do que o conceito de deus representa para elas, porque nunca tentaram
distinguir as coisas.
Diante
da confusão, há ateus que incentivam o desuso da palavra, para que os
sentimentos positivos sejam sempre expressos de forma religiosamente neutra.
Temo que isso, no entanto, não seja tão efetivo numa sociedade majoritariamente
teísta, que vai continuar disseminando o contrário. Além disso, como bem aponta
Durkheim, os fatos sociais exercem uma pressão muito grande sobre
a coletividade, e em especial sobre quem tenta contrariá-los, e não é difícil
perceber que o deus-conceito é uma ideia com características de um fato social
forte. Existem elementos importantes envolvidos nas expressões usadas, que
mantém seu significado mesmo que um pequeno grupo resolva não usá-los. Evitar
essas expressões tende a ter mais efeito nos indivíduos que tentam contrariar a
lógica coletiva do que na lógica em si – a própria resistência tem seu
significado implícito no conceito, que nesse caso, não é a neutralidade
valorativa, mas oposição aos valores carregados no conceito.
Ao me
despedir de alguém dizendo “vá com deus”, eu manifesto quão preocupado estou
com essa pessoa; ao dizer “deus te abençoe”, a senhorinha que carrega as
definições de moralidade da casa manifesta a estima que tem por alguém; a
expressão “está nas mãos de deus” quer dizer que, mesmo não havendo mais nada a
fazer por alguém, meu sentimento é de desejo que algo bom ainda aconteça,
reforçando a esperança em uma positividade abstrata que interfere no mundo.
Mesmo
ao fazer uma oração por uma pessoa que não acredita nos efeitos dela, eu me
sentirei bem, a partir do momento em que a reza, o deus e tudo o que me
ensinaram que é valoroso está sendo associado ao meu caráter. Afirmar e
reafirmar o conceito de deus é uma ótima forma de fazer crer, para mim e para
os outros, que eu sou uma pessoa de boa índole. Quem não faz isso, antes de ser
identificado como um militante da distinção entre religião e moralidade, é
identificado como alguém contrário aos valores incutidos nessas representações.
Organizações
identificadas como ateístas vêm tentando com muito esforço explicar que uma
coisa é diferente da outra, o que é admirável; mas com certeza é precisa muita
paciência para lidar com algo tão enraizado e entender que qualquer pequena
mudança acontecerá em longo prazo. Parte dessa mudança é o entendimento das
origens do preconceito, que nem sempre são a intolerância ou o mau caráter de
quem mistura as coisas, mas podem ser a falta de uma reflexão mais cuidadosa
sobre conceitos que absorvemos e reproduzimos sem nos darmos conta do que podem
provocar.