18/11/2018

Esforço e sorte


Bons resultados em qualquer coisa dependem de muitos fatores, entre eles sorte, contexto, concorrência, oportunidade e mérito. Os dois últimos, no entanto, parecem ter um papel crucial nas concepções de mundo de extremos políticos. Enquanto esquerdistas extremos tendem a atribuir às oportunidades de vida um peso muito maior do que qualquer outro fator para a determinação do sucesso de alguém, os direitistas extremos tendem a jogar toda a explicação para a situação das pessoas no esforço que essas pessoas fizeram (ou deixaram de fazer) para chegar ou não a algum lugar. Enquanto os primeiros tendem a vitimizar radicalmente os pobres, os segundos tendem a culpá-los, e isso extrapola os resultados econômicos.
Chamou minha atenção, um dia, a oposição de duas falas em relação à capacidade de fazer escolhas. Uma mulher lamentava-se amargamente do fato de a sua escola não ter mostrado possibilidades de carreira quando era adolescente. Dizia que por isso ela havia feito uma escolha ruim e estava insatisfeita no trabalho. Diante dessa fala, um moço satirizou a sua postura, dizendo que isso era culpa dela, pois ficou esperando que a escola lhe desse todas as respostas. Por um lado, uma pessoa se vitimizando pelo que o meio não lhe proporcionou; por outro, uma pessoa condenando-a por não definir o próprio destino a despeito do meio.
Eu conhecia aquele moço que fazia a crítica. Uma das características que mais se destacava nele era a “inteligência” - uma capacidade de decodificar tarefas e responder a desafios com velocidade acima da média. Quase toda a formação dele foi no colégio Bandeirantes. Aos que não conhecem, esse é um dos colégios mais caros de São Paulo, em que crianças são treinadas desde pequenas a produzir resultados, por meio de metodologias de ensino que atinjam desde o aluno mais estudioso até aquele que se encosta na postura de rebelde. Tem feiras de exposição sobre profissões, conselheiros, psicólogos e todo tipo de recurso que alguém pode ter para desenvolver-se e fazer escolhas.
Achei muito curioso como, após ter recebido toda ajuda possível do meio, ele considerava que ninguém deveria precisar dela, mas simplesmente descobrir o mundo por si só. O tom de sátira na sua voz deixava claro que ele se considerava intrinsecamente mais inteligente do que a moça insatisfeita, e parecia gozar de certo prazer com o fato dela estar em uma carreira ruim, como um castigo por não ser tão “inteligente” como ele.
Não cheguei a conhecer a moça para saber se ela não teve outras oportunidades de procurar uma boa carreira. Acho muito difícil que a única referência existente na vida dela tenha sido a escola. Sem saber que oportunidades ela teve e se soube aproveitá-las não dá pra dizer muita coisa. Talvez ela não tenha procurado bem, mas talvez tenha se dedicado muito às coisas erradas, por serem as únicas que foram apresentadas.  
Quanto ao moço que acha que o meio não tem influência, mas nunca esteve em um meio árduo, ainda deve se considerar altamente inteligente por chegar tão rapidamente a uma conclusão simplória sobre outra pessoa, sem levar em conta o contexto, as possibilidades de desenvolvimento ou qualquer outro fator que não fosse o próprio preconceito.
No final, acho que nos cabe lutar pela democratização de boas oportunidades, equiparação de condições e valorização do esforço. Enquanto essa utopia não se concretiza, é bom tomar cuidado com análises mal pensadas, ainda mais depois de ter tido tantas oportunidades ao ponto de iludir-se quanto ao mérito de tudo o que se é capaz.

02/11/2018

Ego virtual


A plateia criada pelas redes sociais mostrou o quanto muitas pessoas gostam de humilhar umas às outras. Na internet é raro o comentário, notícia, post ou blog que não conte com os famosos trolls ou pessoas que parecem sentir grande prazer não apenas em "vencer" uma discussão, mas em fazer com que seu opositor se sinta mal, seja exposto ao ridículo e humilhado publicamente. A máxima "não leia os comentários" acaba servindo de proteção a uma tendência que encontrou espaço livre pra se manifestar na rede: o sadismo, praticado até mesmo por aqueles que se concebem como o estandarte da moralidade na vida cotidiana.
Há desde trollagens “puras”, em que o autor quer apenas criar confusão por quaisquer meios que encontrar no momento, até o desvelar dos preconceitos mais reprimidos. Um exemplo é o machismo, que aparece quando uma mulher tenta colocar um argumento e recebe respostas como “é mal comida”, “volta pra cozinha”, “precisa dar” e outras cordialidades. Muitos homens não estão preparados para aceitar mulheres como debatedoras e tentam humilhá-las afirmando publicamente que o seu papel é privado, de fazer sexo com o homem e de servir ao homem, cuidando da casa ou das suas necessidades. No mínimo, as querem fora do debate, que estaria reservado aos seres pensantes que, na sua concepção, têm que ter um pênis. Outro exemplo é a homofobia. Insinuar que o amigo é gay, chamá-lo de bicha, veado ou qualquer outra piada com foco na orientação sexual é outro exemplo de problema comportamental que existe há muito tempo fora das redes e continua nela.
Se fosse apenas coisa de algumas pessoas com problema de autoafirmação seria simples, mas a verdade é que a tendência vai além. Machismo e homofobia são problemas por si sós, mas a vontade de humilhar e o prazer em fazer sofrer está espalhado também entre os mais politicamente corretos. O anonimato da rede esconde o quanto a pessoa que leu nossa ofensa ficou afetada – fazemos o ataque, não vemos o sangue. É fácil pintar um ser insensível em quem pensa diferente e ferir mais do que os preconceituosos mais escrachados.
Às vezes a tática é mais sutil, mais “sofisticada”: levar o outro à contradição; apontar seus erros; usar o argumento do outro contra ele próprio para “dar o troco”; caçar e ridicularizar erros de escrita; usar fatos da vida pessoal que estiverem à mão pra tentar montar um arcabouço de sofrimento. Quando não estamos vendo o outro sofrer podemos sempre imaginar um rabo e uns chifrinhos nele e assumir que a nossa estratégia de combate é legítima, afinal, estamos lutando contra o mal, não contra uma pessoa. Não há a evidência, por discussões virtuais, de que o outro sofre, de que também pode estar nessa busca desenfreada por aprovação social, de que também pode estar com essa agoniante necessidade de humilhar para sentir que tem um lugar no mundo.
Não há como negar o ego, mas há como refletir sobre como lidamos com ele, em situações virtuais ou reais, que quase se confundem.  Não dá, tampouco, pra conhecer pessoalmente cada pessoa com quem discutimos no mundo virtual. Mas dá pra se relembrar periodicamente que por trás de cada interação existe uma pessoa – que discorda, que não sabe tudo e que pode ser extremamente arrogante e desagradável, mas que muito provavelmente sofre e que poderia reagir melhor a quem tivesse um pouco de empatia pelo lado humano dela.

18/10/2018

1984


Em 2006 mudamos para a Vila Sônia com a promessa de que lá haveria uma estação de metrô. Conforme os anos passavam e a estação não ficava pronta, cobramos o metrô por meio da associação de bairro. Ainda me lembro dos representantes dizendo que estourando em 2009 ia sair. Especulação imobiliária a mil, congestionou ainda mais o já lento caminho da região para o centro. Saí de lá em 2010 sem ver a estação pronta. Mudei para a França, voltei e ainda nada. Pesquisando um pouco na internet, acho previsões para 2018, 2019 e 2020. O mais curioso nem é isso. O curioso é achar inúmeros artigos e notícias dizendo que a construção começou em 2010, que a primeira previsão dada foi 2012... Então minhas memórias, fotos e fatos estão todos errados? Eu delirei que morava lá e falava nas reuniões de associação de bairro bem antes? Depois de 12 anos de enrolação, não só as coisas não andam e o mesmo governo continua no poder do estado, mas as notícias também mudam o passado. 1984 está aí.

04/10/2018

Vaidade e inteligência


Alguém compartilha uma ideia genial para mudar a sociedade. As pessoas veem, reconhecem a importância, mas deixam pra ver mais tarde – o que significa nunca. Alguém diz que as mulheres que têm a letra “a” no nome são mais bonitas. Milhares curtem, compartilham, sorriem. “Pessoas bagunçadas são mais inteligentes”, “pessoas quietas são fiéis”, “veja aqui o que as imagens dizem de você” – são tantos exemplos de massageadores aleatórios de ego que ganham popularidade que só posso concluir que a carência anda em alta; que suprime tudo o que as pessoas dizem ser seus valores e prioridades; mais: que a carência é grande a ponto de ser perigosa, pois políticos e outros espertinhos sabem usá-la.
“Você é tão inteligente! Não como aquele bando de imbecis que votam no...” E eis um novo militonto defendendo quem ele nem sabe o que faz. “Você é tão preciosa pra mim que eu tento te proteger da verdade.” E eis mais uma moça sustentando um relacionamento abusivo. “Fulano é tão ético! Se diz ateu, mas na verdade age pelas mãos de deus” – e eis a moralidade sendo confundida com religiosidade e reprimindo a liberdade de pensamento.
É preciso cuidar do psicológico das pessoas, não só como uma questão burguesa de autoconhecimento e filosofia pessoal. É preciso que o psicológico esteja forte o bastante para resistir quando o mundo quiser imbecilizar massas pela vaidade; formar rebanhos de acéfalos gritando slogans perigosos quando no fundo só querem desesperadamente melhorar a própria autoimagem.

21/09/2018

Seria a fé intolerante uma jogatina espiritual?


Uma parte importante da crença é o apego à esperança de que algo sobrenatural interfira na própria vida, mudando aquilo que não se consegue mudar por esforço, inteligência ou sorte. É a ideia de que se a esperança for muito grande, ela será concretizada. É o medo de que ao perdê-la, seja por desânimo ou reflexão, a pessoa não seja mais uma das contempladas quando a mágica finalmente acontecer. Especialmente quando o seu deus não tolera desistentes, o questionamento tem um preço muito alto, fazendo com que a dúvida seja enterrada junto com outros sentimentos ameaçadores de todas as promessas invisíveis.
Mexer com a esperança de ser premiado nessa loteria sentimental é delicado. É como pedir a um jogador veterano que não pague o próximo bilhete – provavelmente ele ficará aterrorizado com a ideia de que seu número finalmente saia e ele perca o prêmio bem quando desistiu. Se ele já tiver ganho alguns reais como prêmio de consolação, então, estaremos mexendo com algo de cuja possibilidade ele acredita ter evidências.
Pedir para considerar o ponto de vista ateísta é pedir que um novo caminho de esforço e incerteza seja traçado. É dizer que não adiantou nada ser bonzinho o ano inteiro porque Papai Noel não existe e o seu pai não tem dinheiro pra comprar presente. É reeducar o pensamento, mexendo com sentimentos dos mais atemorizantes.
Às vezes, a própria existência de ateus é tida como ameaça, como uma possível causa para a demora em receber o prêmio, como se enquanto todos não acreditassem na mesma coisa, o mundo não tivesse os critérios para que a mágica acontecesse. Ademais, ter alguém para culpar é um fator que alimenta a fé, que alimenta a crença de que é possível, um dia, aquilo o que sempre esteve dentro da sua cabeça, e em nome do qual você lutou até contra as maiores evidências, ser realidade. É o famoso enredo de tantos livros e filmes: o mocinho é desacreditado, enfrenta desafios, persiste e quando está quase perdendo, vira o jogo e derrota o bandido.
Seria bonito, se não fosse ficção e se essa ficção não prejudicasse milhões de pessoas que apenas exercem o direito de não jogar na loteria.

07/09/2018

Empatia


Quando a gente é o que o status quo pede que sejamos, por conformação ou por coincidência, a discriminação passa muitas vezes despercebida. Escolher feminino ou masculino em uma lista não é um problema para quem se identifica com o gênero biológico; escolher a cidade em que se nasceu em uma lista fechada não é problema para quem nasceu no único país considerado no formulário; dar o endereço em uma ficha de inscrição não é problema pra quem tem um contrato assinado que lhe garante moradia.
Empatia é a capacidade de perceber os problemas que esse tipo de limite pode causar. Ser “cidadão de bem” é ser capaz de perceber que existem pessoas que não se encaixam em classificações fechadas e sofrem com isso; é ser capaz de conceber um sistema mais inclusivo em vez de ficar chorando na internet que o politicamente correto fere o modelo a que você se acomodou.
Será que todo formulário precisa ter gênero? Será que uma lista de cidades não pode incluir “cidades de outro país” como uma opção? Será que o endereço indicado não pode ser um e-mail, nessa era em que quase todo documento pode ser virtual?
Os mais resistentes acharão as circunstâncias particulares a dar como exemplo para opor à argumentação. “Ah, mas no caso de exame de câncer de mama...” “Ah, mas se precisar enviar algo por correio”. O “e se” é um indicativo de hipótese. As pessoas que têm empatia para pensar no outro obviamente terão capacidade de pensar em situações particulares e entendê-las. Será que o inverso é verdadeiro? Quem tem criatividade para ficar pincelando situações que justifiquem a exclusão terá capacidade de se colocar no lugar de quem está sendo excluído e ajudar a pensar em sistemas mais completos?

10/08/2018

O "estupra, mas não mata" corporativo


Quando pego ônibus gosto de ouvir alguma coisa – ou música ou a conversa alheia, experiência que só o transporte público no Brasil proporciona: não apenas é possível ouvir o que as pessoas falam, como muitas vezes elas fazem questão de falar alto para que o público possa apreciar.
A partir de uma série de conversas ouvidas em diferentes linhas de coletivo, notei que é cada vez mais frequente o “estupra, mas não mata” corporativo.  Parece que é visto como inteligência a ação implícita, a intenção simbolizada, mas não passível de condenação; a disputa de poder por palavras e gestos sem deixar nada muito claro a ponto de exigir uma resolução prática. Prejudicar sem destruir, fazer sentir mal sem ofender, plagiar sem tirar o mérito, sabotar sem dar chance de se defender.
Parece que existe uma etiqueta no mundo corporativo – perdoem minha inocência se sempre existiu – que reza que você pode até ser percebido pelos seus inimigos, mas não pode dar elementos para ser acusado. Já ouvi manifestações emocionadas de pessoas contando como perceberam a angústia no outro durante uma reunião; pessoas regozijando-se não ao conseguir o que queriam, mas em perceber que alguém foi ferido por isso – mas veja bem: ferido, não morto; prejudicado, não demitido. Humilhado talvez, mas não de forma clara, a ponto do autor poder ser condenado pelo ato de humilhação.
Já ouvi tons de voz que expressavam extremo orgulho ao contar quão humilhante foi a própria fala para outra pessoa, quão inferior ela pareceu aos olhos dos outros, quanto sofrimento ela era capaz de causar do alto da sua esperteza. E não foi delírio de um falante, os ouvintes regozijavam-se também, compartilhavam da percepção de que isso é o ideal, de que isso é aceitável no mundo corporativo.
A meu ver, esse é o espírito do famoso “estupra, mas não mata”: é a ideia de que é legítimo, e até mesmo esperado que se provoquem danos íntimos nas pessoas sem, no entanto sair com as mãos sujas de sangue. Arrisco estender a metáfora e dizer que nesses casos, é comum atribuir-se a culpa à vítima: “ele não foi humilhado por mim, mas pela própria incompetência”; “ela deixou isso acontecer, aliás, pediu para que acontecesse”; “ele se achava esperto, mas recebeu uma lição”.
É claro que a violência de um estupro é de natureza e intensidade completamente diferentes, mas fico me perguntando se, como insinua Freud em “o mal estar da civilização”, isso não seria uma forma das pessoas exercerem a violência que a sociedade tanto reprime, mas que o íntimo quer botar pra fora. Tem gente mais cara de pau, que culpa até as vítimas de estupro, com o “ela estava vestindo uma blusa muito chamativa”; “ela pegou o caminho mais perigoso”; “ela mexeu com as pessoas erradas e aprendeu a lição”. Tem gente menos cara de pau que encontra terreno livre pra exercer a maldade no trabalho.
Não importa o que as pessoas sentem, não importa o merecimento ou o objetivo final do trabalho – importa conseguir o que se quer à custa de outros sem, no entanto, expor-se – isso não seria admirável. O que é valorizado aqui não é a ética ou o profissionalismo, mas a esperteza em forma de pequenos gestos, palavras, enfim, essas pequenas coisas que podem destruir um íntimo se aplicadas com frequência suficiente. E no final, se a pessoa morrer, é porque era fraca, não merecia estar ali, só os fortes sobrevivem – e todos querem ser os fortes.


21/07/2018

brasil


O “povo brasileiro” sempre foi uma categoria muito abstrata para que eu pudesse notar seus traços diariamente. Sempre tinha que acessar teorias e, então, ler na realidade sinais do que a teoria diz. Na prática, era identificação do que as pessoas ao meu redor fazem com o que um ou outro autor identificou, mas ainda tinha um bom nível de abstração.
Depois de morar fora durante três anos, a percepção mudou. Já na primeira vez que passamos férias no Brasil, alguns comportamentos gritavam – não estávamos mais habituados a eles. É uma experiência realmente diferente quando você se acostuma com o jeito de outro povo e volta a olhar para o seu. Não há livro que tenha tanta força.
O que me chamou a atenção nas férias foi o quão altos podemos ser em público – enquanto os franceses procuram ser discretos nos metrôs, cafés e salas de espera, brasileiros querem ser ouvidos por todos. Já no avião, às onze horas da noite, tinha gente de pé batendo papo alto nos corredores.  A pessoa sentada ao meu lado tentou, inúmeras vezes, fazer com que nossa viagem fosse uma jornada de 13 horas de papo furado, quando eu manifestamente queria dormir.
Até aí, quem pode dizer o que é melhor ou pior? Cada povo tem seus hábitos, seus costumes, seu comportamento coletivo. O que mais me pegou, no entanto, foi voltar o Brasil. Voltar a morar aqui me forçou a lidar com esse comportamento coletivo de forma que afeta a minha vida. Lembrei do que acontecia comigo antes de ir para a França, que eu pensava ser “o mundo” e que lá eu descobri que é muito mais “o Brasil”.
O que mais me incomodou e ainda incomoda aqui é que quando queremos lutar por alguma melhoria, estamos sós. A maioria dos brasileiros resmunga muito, mas faz pouco. Quem tem interesse em reivindicar qualquer mudança tem que se investir em procurar grupos organizados sobre aquele assunto e se dedicar, só ou com esses grupos, a remar contra a maré para ver qualquer mudança a longo prazo. A maré não luta, a maré publica indireta no Facebook e volta a não fazer nada. E isso é um círculo vicioso, afinal, o fato de que a maioria das pessoas não vai fazer nada serve de justificativa para qualquer um não fazer também.
Outra diferença grande com relação à França: brasileiro não fala na cara. Fala de um pro outro, reclama do amigo pra mãe, do marido pra amiga, dos políticos pra internet, mas não encara ninguém frente a frente. É a militância escondida, a autoafirmação no grupo que concorda, mas nunca o enfrentamento, nunca o pedido oficial de resolução das coisas. Brasileiro gosta de falar sobre os problemas, não de buscar soluções. E para alguém que quer buscá-las, isso pode ser mais solitário do que agir em um país em que ninguém fala a sua língua.
Tem coisas boas no Brasil? Certamente. Mas pra ser bem sincera, tenho que fazer muito esforço para identificar tendências coletivas que me agradem aqui mais do que as da França. No geral, ainda tento me convencer, especialmente quando se trata de política, institucional ou cotidiana, de que não fiz o pior erro da minha vida voltando.

14/07/2018

Regar ou represar


Sempre fui muito autocrítica, e isso fez com que muitas vezes eu deixasse de publicar diversos pensamentos por falta de certeza. Diante de tanta informação mal embasada, textos achistas e coisas que eu considero desserviços ao conhecimento, me retraí com medo de ser mais uma voz a inundar o mundo com desinformação.
Aí a gente fica em casa, quietinha, observando o mundo se desenrolar com base em coisa muito pior do que aquela que você poderia ter dito. E vê sem contribuir em nada com a direção que a coisa toma. Há pouco tempo me dei conta de que por medo de dizer alguma bobagem, fiz a maior delas: não dizer nada. E tenho a impressão de que muita gente boa, que contribuiria muito com o pensamento coletivo, também se cala por medo de dar uma escorregadinha em um mundo que é só lambança.
Aí a pessoa estuda, lê, discute, ouve, desenvolve e guarda. Guarda para que milhões de pessoas que não estudaram, não leram, não discutiram e não ouviram nada além dos próprios preconceitos inundem a cena pública com ideias que dão desânimo de sociabilizar. Pense: se a ideia foi bem pensada e você realmente acredita nela, não compartilhar não vai mudar nada – nem a sua vida, nem a dos outros. Se você escolher expô-la ao mundo, no entanto, existem algumas possibilidades:
1.    A ideia é boa e vai mudar a vida de alguém: pode ser na hora ou pode ser depois, quando a pessoa estiver lavando louça e pensando sobre a vida e coisas relacionadas ao que você disse. Às vezes precisa de tempo pra fazer uma conexão mental. Por mais que você não veja o resultado que provocou na hora, ele pode acontecer. O mundo ganha.
2.    A ideia é ruim e alguém vai contra argumentar.  Nesse caso, quem melhora é você, se souber refletir sobre a crítica. Você ganha.
3.    A ideia é boa, mas por algum motivo ela incomoda, não tem impacto, não muda nada no mundo. Você perdeu alguns minutos publicando, mas ainda tem a chance de refletir sobre a razão dela não ter tido impacto. Você ganha.
4.    A ideia é ruim e ninguém comenta. As pessoas olham torto para o que você disse e cortam laços com você, sem tentar explicar por que você está errado. Se você faz questão de ter amizade com gente intolerante, perde. Se não, ganha ao selecionar melhor seu círculo de contatos.
Não vejo ganho em compartilhar opiniões raivosas, racionalizações de preconceitos, e principalmente, informação falsa. Se o que você está pensando em disseminar for qualquer uma dessas coisas, não conta com meu apoio. Mas se for algo sobre o que pensou e que acha que é digno de apreciação, ganha-se muito mais oferecendo a outras pessoas do que somente à sua memória, que vai se apagar. 

06/07/2018

Público x privado ou Por que as pessoas discutem sobre ter filhos?


Em um casal, a discussão sobre ter filhos faz todo sentido. Quando as pessoas envolvidas na discussão são as que terão que cuidar da criança, não há dúvidas da sua utilidade. Mas a discussão sobre tê-los ou não tê-los costuma ultrapassar as fronteiras de quem tem qualquer interesse nisso. Vizinhos, colegas, parentes distantes, apresentadores de TV, jornalistas – em todo lugar existem teorias sobre se “as pessoas” devem ou não ter filhos.
A humanidade chegou a um ponto em que temos pessoas suficientes para não ameaçar a existência da espécie. Alguns dizem, aliás, que o excesso é o que ameaça. Caso as pessoas queiram se reproduzir, no entanto, também há lugar. As novas gerações também podem trabalhar e desenvolver coisas boas para o planeta. A questão é: não somos uma pequena comunidade de pessoas discutindo a preservação da espécie por meio de ter ou não ter filhos. É possível deixar que cada um decida por si só.
Ainda assim, o mundo insiste em querer decidir pelas pessoas, e se estende para outras questões igualmente irritantes: como as mulheres devem se comportar, como os religiosos devem viver sua fé, quais devem ser suas relações sexuais. São muitos exemplos de um fenômeno que faz parte da nossa sociedade, por mais desnecessário que seja: regular a vida privada alheia.
Sobre o que é domínio público, como a gestão do sistema de transporte e a manutenção da cidade, poucos se interessam; mas falar sobre o que o vizinho tem que fazer dentro da casa dele tira o sono. E mesmo que a pessoa nunca tenha levantado uma pedra para melhorar o bairro, ela sempre vai achar justificativas coletivas para o seu esforço em se meter na intimidade alheia.
Quem vai ter filhos ou não eu não sei – isso é uma decisão privada. Mas é urgente que se cultive publicamente a consciência do que é público ou privado, o respeito a escolhas individuais e a participação pública pela melhoria da sociedade. A próxima etapa na evolução da sociedade brasileira é deixar de ser uma nação de intrometidos para ser uma nação garantidora de direitos.

29/06/2018

Anúncio


Procuram-se pessoas capazes de argumentar racionalmente, mesmo quando suas vísceras mandam agarrar o pescoço das outras sem nem saber explicar a origem dessa raiva.
Procuram-se pessoas que se dispõem a ler um texto que possa enriquecer a conversa, que estão mais interessadas em evoluir do que em ganhar a discussão, que não recorram à violência, nem física nem simbólica, para se referir a alguém de quem discordam.
Procuram-se pessoas raras, para conversas inteligentes, dispostas a mudar de opinião diante de argumentos convincentes.
De pessoas donas da verdade, que se sentem rodeadas por burros porque nem todos têm a mesma opinião que elas, estamos sobrecarregados.
Procuram-se pessoas dispostas a pensar para além dos próprios preconceitos, mesmo que ainda não saibam direito quais eles são.
Procuram-se pessoas que não têm certeza, que sabem que erram, que discordam, mas que são capazes de respeitar mesmo assim.
É urgente encontrar pessoas que aceitam tentar entender o ponto de vista oposto antes de tentar esmagá-los. Paga-se caro.
Procuram-se pessoas para conversar em mesas de bar, em casa e em situações em que a conversa flua para além da tela, que aceita tudo o que dizem sem exigir que vejam os olhos do outro.

22/06/2018

Borboletas de papel


Ao contrário do que é pregado em muitos livros de autoajuda e sites motivacionais, não acho que positividade possa ser forjada. Não de verdade. Se sua vida não agrada, forçar positividade é fingimento. Pode gerar um sorriso ou outro, pode atrair momentos que compensem o que há de errado, mas não se compara em nada à positividade de uma vida feliz.
Há alguns anos eu estava com um jeito amargo de ver a vida. Mesmo as coisas mais positivas que aconteciam geravam em mim um sentimento de desconfiança, de contrariedade, um “ok, mas...”. Havia pendências que pesavam sobre meu julgamento, uma realidade que matava meu otimismo e me transformava nessa pessoa negativa.
Nesse contexto, eu sei que um monte de gente me culpou, explícita ou implicitamente. Achavam que a culpa da minha infelicidade era a minha negatividade, e não o contrário. Achavam que se eu me forçasse a sorrir, se eu me forçasse a sociabilizar com quem eu não gosto, em suma, se eu me forçasse a ver borboletas no cenário do pesadelo, eu começaria a ser feliz.
Algum tempo depois de decidir mudar de cenário, eu digo: não era culpa minha. Aliás, se alguma culpa eu tinha era a de não dar um basta no que me fazia infeliz. Era de deixar que a realidade em que eu estava inserida fizesse de mim uma pessoa negativa. O tempo passou, eu me desintoxiquei e hoje me pego sendo positiva sem forçar.  
Tenho problemas e dificuldades, mas elas não me desanimam, porque a balança está positiva. Eu vejo borboletas, não porque eu estou passando o giz sobre um cenário sombrio, mas porque há borboletas nesse cenário, em meio a pedras e obstáculos, mas há.
Eu gosto de pessoas que sorriem. Mas eu espero que os sorrisos sejam verdadeiros. Eu espero que as pessoas toquem as borboletas em vez de fingir vê-las. Pode demorar e dar trabalho, mas vale muito mais a pena plantar um jardim do que colar fotos de árvores no concreto.

22/04/2018

Mais do que eleitor, cidadão


Quem mais se importa com campanha eleitoral são os partidos políticos. Ainda assim, é muito comum ver pessoas analisando a política como se durante todo o mandato de um representante a eleição estivesse em jogo e cada um tivesse que defender uma bandeira eleitoral. Muitas pessoas que não são e não pretendem ser afiliadas a partido algum enxergam seus representantes como representantes de bandeiras, e não da gestão de sua cidade, estado ou país.
Uma das consequências mais sérias disso é que as ações desses representantes são vistas e aceitas como estratégias eleitorais, não como um serviço público. Se o representante em questão não pretende disputar nova eleição, sua atuação é imediatamente associada a outro candidato a quem esteja ligado, quando seu trabalho deveria ser analisado por competência, em prol do bem comum.
Crítica corriqueira à “massa de eleitores” é que, depois das eleições, ela esquece em quem votou. Ouso dizer que essa é a postura ideal – não por falta de atenção, mas intencionalmente. Façamos o esforço de deixar de lado quem escolhemos nas eleições para ver a pessoa eleita como representante de todos. Passado o processo eleitoral, é assim que cada político deve ser tratado: como representante e funcionário de todos, não apenas de quem lhe deu um voto.
O que se ganha ao abrir mão da responsabilidade de fiscalizar o governo só porque não foi você quem o colocou no poder? O que se ganha ao passar os quatro anos de um mandato agindo como se seu principal interesse fosse ganhar a próxima eleição, e não uma cidade digna de se viver? No caso contrário, quando o seu candidato é eleito, cabe a pergunta correspondente: o que você ganha defendendo o seu candidato acima de tudo, sem enxergar ou reclamar quando ele erra? O voto é secreto, ninguém é obrigado a dizer em quem votou, mas mesmo assim há muita gente que cultiva uma espécie de orgulho partidário a ser defendido, postura que compromete a luta por uma gestão decente.
Não é nosso papel fazer propaganda eleitoral, ainda mais depois de passadas as eleições. A política precisa ser entendida como um sistema de governo que serve para uma sociedade democrática se autogerir, mesmo tendo muita gente pra cuidar e decidir. Se antes era muito difícil se manifestar, por falta de meios tecnológicos, hoje temos acesso a telefone, e-mail e página na internet de nossos representantes. Quando não houver abertura, ainda dá pra se organizar, se manifestar na rua, acessar a mídia ou ouvidorias. De qualquer forma, em um contexto como o nosso, podemos participar. Quando a eleição passa, é o momento de fiscalizar, pegar no pé, reconhecer os bons serviços e admitir o que está errado, independente de você ter votado ou não naquele partido – ele é seu funcionário e deve ser cobrado e ajudado para trabalhar da melhor forma que puder.
É preciso parar de tratar partido como time de futebol e passar os quatro anos do mandato tentando ressaltar as virtudes do próprio e atacar os defeitos dos outros. Isso não leva a nada, além de uma concentração da vida política apenas em época eleitoral, como se fosse a Copa do Mundo, e não uma estratégia decisiva para o próprio transporte, a própria saúde e a própria qualidade de vida.
A meu ver, o grande interesse que circunda as pesquisas eleitorais mostra uma coisa muito clara: existe uma multidão interessada no jogo, mas que não quer assumir a responsabilidade pelas próprias escolhas, e prefere dividir a culpa de votar errado com “a massa”, ou atribuí-la “aos outros” ou, no limite, alegar impotência porque “é tudo igual”.
Essas mesmas pessoas são as que vão dividir a culpa de não reclamar, de não cobrar, de não participar e de não fazer nada pra que aquele candidato que ajudou a colocar no poder seja digno de seu voto – é o famoso “ninguém faz, não adiantaria se eu fizesse”. Talvez esses próprios eleitores não achem o próprio voto digno, no fim das contas, e só queiram uma boa estatística pra esconder a sua falta de interesse com relação à própria cidade.
Perto das eleições tem muita gente com um interesse fora do comum nas decisões políticas; muitas pessoas me perguntam quem eu gostaria que ganhasse.  A resposta que eu queria dar, como cidadã, não apenas eleitora-torcedora-de-time-político é: não importa. O que importa é o que vamos fazer depois que alguém ganhar.

10/04/2018

Insatisfação ativa


Muita gente me olhou torto quando eu criticava as coisas, alegando que eu era ingênua ou que esperava demais. Segui não satisfeita, mas sem nunca deixar que isso se transformasse em resmungos inertes. Sempre que estou insatisfeita com algo, tento mudar. Hoje olho pra trás e vejo que os que me criticavam continuam lá, aceitando o que eu não aceitei, engolindo o que eu não engoli, e eu percebi que é possível sim melhorar. Basta agir sobre a própria insatisfação - nem remoê-la, nem calá-la. A quem está satisfeito com tudo, ótimo. Só não esperem que todos pensem igual.

07/04/2018

Direito a futilidade


Cresci em uma família de classe média e estudei em uma grande universidade. Cursei Ciências Sociais, um curso que amei, que me fez ver muitas coisas que eu não via, mas que também vinha carregado dos seus próprios dogmas e preconceitos. Um deles é a futilidade. Tudo o que não continha um fundo politicamente crítico, socialmente responsável ou intelectualmente complexo acabava ganhando um status de segunda categoria, e quem fosse pego em uma atividade com esses aspectos também.
Isso acabou se estendendo para fora da faculdade, provavelmente porque acabamos identificando e sendo identificados por semelhantes em tudo o que fazemos. E com a graça de poder ter conversas muito interessantes com essas pessoas vieram também aqueles velhos preconceitos; com a possibilidade de fazer algo relevante para o mundo, também algumas normas sociais não ditas, mas muito sinalizadas e percebidas.
Porque aprendemos que o consumismo é uma ideologia imposta, já não podemos mais ter vontade de fazer compras. Porque temos contato com obras musicais com profundo significado histórico, é vergonhoso ouvir uma música considerada de massa. Porque temos o potencial de usar nosso tempo e conhecimento pra mudar a sociedade, virou pecado mortal dedicar-se a coisas fúteis, como jogar vídeo-game ou entrar em uma roda de fofoca.
Eu entendo perfeitamente que uma vida alienada, em que futilidade, consumismo e superficialidade são tudo o que se preza, é algo problemático. Eu sei que a grande maioria das pessoas tem nisso um mantra (aliás, por favor, não use esse texto pra justificar uma vida toda assim). Com que eu não concordo é essa repressão em nome da “boa conduta”. Se não for contracultura é ruim; se não usar latim é fraco; se tiver alguma ligação com o sistema-burguês-corrupto-manipulador não faz mais parte da turma.
Vejo um monte de pessoas livres (ao menos mais livres do que a grande maioria da população pra fazerem muita coisa) que criam as próprias amarras em nome do que muitas vezes não passa de uma pose. Aí eu me pergunto: o que é mais superficial: a pose de intelectual ou o gozo legítimo de um pagode com cerveja e amigos? Me pergunto quanta gente infeliz não consegue viver a própria vida plenamente por estar presa a esses padrões grupais, por ter que responder ao que a família, a religião ou o próprio grupo de amigos espera ou, muitas vezes, exige com base em chantagens emocionais.
Acredito que, como tudo na vida, o equilíbrio é o ponto ideal: saber até que ponto é importante atuar em prol de ideais e até que ponto é importante dar-se liberdade para gozar o que se quer gozar.  Uma vida toda em um desses extremos, para mim, é incompleta.

05/04/2018

Créditos


Não é porque você ajudou alguém que você tem direitos sobre o que essa pessoa conseguir - a não ser que seja algo muito bem definido, tipo contrato assinado, mas aí já não é ajuda, é serviço. 
Tem gente que acha que merece reconhecimento pelo fruto do trabalho alheio só porque em algum momento deu um palpite sobre o que estava acontecendo. Palpite um monte de gente dá, fazer é que é o desafio. Mesmo que o seu palpite tenha sido levando em conta no processo, ele certamente não representa metade do que é necessário para o sucesso. Aliás, provavelmente ele foi um palpite entre muitos. 
Agora, se você tem certeza de que só com a sua ideia foi possível construir tudo o que o outro construiu, a pergunta é outra: por que você não fez?


23/03/2018

Investimentos


Em um concurso que prestei recentemente, ao chegar muito cedo para a prova, fui tomar um café em uma doceria próxima. Estava lotada – provavelmente de candidatos, então pedi licença para me sentar em uma mesa já ocupada. As moças, que cederam, eram tão simpáticas que ficamos batendo papo por bastante tempo, até a hora da prova. A tensão diminuiu e fomos para o colégio mais leves.
Não sei se tive uma colocação alta, mas fiquei torcendo para que elas tivessem. Experiências como essa mostram a que viemos – não é apenas ganhar, não é apenas concorrer. Se não formos capazes de ter o mínimo de empatia por outras pessoas, o dinheiro ganho serve pra quê?
Ao longo da minha trajetória vi tanta gente que subiu de cargo prejudicando outros que cheguei a me sentir ingênua por prezar pelas pessoas. Mas nunca, nem depois de anos desempregada, tenho vontade de ser como aquelas pessoas. Teria mais dinheiro, à custa de boas amizades. Teria mais estabilidade, à custa de experiências de vida que tenho certeza que vão acalmar minha mente quando, na velhice, pensar sobre o que eu fiz da vida.
A quem me pergunta, digo que fui bem no concurso. Fui bem porque dei o meu melhor e porque estive bem naquele dia. Fui capaz de ver nas relações com minhas “concorrentes” o sentido de conseguir qualquer emprego ou levar a cabo cada empreitada que me der meu sustento: humanidade.
Ganhar dinheiro a despeito das relações humanas não é vida, é sobrevivência. Eu quero viver.

09/02/2018

desemprego

Você se investe, se veste, se arruma, se apruma
Não tem resposta, não tem aposta, não tem chance nem alcance
No reino em que julgar o livro pela capa é a norma, o conteúdo definha
à espera de que de alguma forma, possa mostrar que valor tinha

Você tem tudo o que pedem, mas não tem “o perfil”
critérios de escolha que favorecem o ardil
Quem aponta o dedo se sente superior a quem nem conhece
Hábito enraizado, julga, rejeita e esquece

Procurar emprego é trabalhar diariamente sem recompensa
Quanto mais se tenta, mais é necessário ter resiliência
Ainda assim, o tempo “fora do mercado” é visto com desconfiança
Preferem contratar quem nunca teve que lidar com a desesperança

Quem sempre recebeu seu salário, muitas vezes procrastinando
é priorizado a quem passa meses ou anos lutando
depois as empresas investem milhões em palestras de motivação
enquanto recusam quem se automotiva todo dia diante do “não”

Manter as coisas como são é uma maneira muito eficaz
De nunca resolver os problemas de sempre
Não vêm que só inova quem é capaz

de dar chance ao diferente 

03/02/2018

Cordialidade lupina

A cada novo dia procurando emprego me convenço de que o povo brasileiro se acha muito mais solidário do que é.
O desemprego é explorado por inúmeras empresas e pessoas.
Exige-se de desempregados que 
paguem para ver vagas, 
paguem para se candidatar, 
paguem para ter alguma chance de entrar no mercado. 
E ainda brada-se que o Estado tem que ser mínimo, diz-se com imensa pose de sabedoria que o governo deve ficar ausente do seu papel de proteção social, 
como se já não fosse. 

28/01/2018

O limite da opressão

Oprime quem vomita opiniões para não deixar o outro falar.
Oprime quem não aceita outra opinião além das próprias verdades.
Oprime quem desqualifica por características pessoais.
Oprime quem usa linguagem verbal, não-verbal ou qualquer meio de que disponha pra que o outro não se expresse, não discorde, não se sinta à vontade para ser o que é.
No entanto, suprimem-se palavras, comportamentos ou ações. Não se suprimem pensamentos.

O pensamento continua a correr, vai e volta, olha para o fato, para o argumento e para o opressor. Cresce, vive, transforma-se e transforma o mundo, queira ou não queira quem oprime. 

21/01/2018

O castigo ao sexo

- Tira a mão daí menino!
- Tem que se dar o respeito!
- Você soube o que a fulana fez?
Um dos maiores tabus da humanidade: o sexo.
Por mais que o sexo consentido não prejudique ninguém, não mate ou não tire direitos, aprendemos desde pequenos que é uma coisa vergonhosa, a se evitar e, em muitas situações, punir.
Transou com muitas pessoas? Tomara que pegue uma DST. Engravidou e não queria? Bem feito, agora cuida – como se criar um ser humano fosse castigo, não responsabilidade.

O Brasil precisa dar muitos passos para ser uma sociedade humana. Um deles é valorizar quem pensa em políticas públicas mais do que em opções sexuais, que fala mais de economia do que faz piadas com mulheres, que tem mais seriedade do que julgamento sexual na cabeça. 

16/01/2018

São Paulo 2018

Durante três gestões de prefeitura eu usei o sistema de solicitação de serviços da internet pra várias coisas - transporte, lixo, iluminação, trânsito, pintura, etc. Apesar das diferenças de direcionamento político entre as gestões, essas questões de zeladoria costumavam funcionar. Recentemente resolvi solicitar uma inspeção da situação de circulação de pedestres em um ponto da cidade. Achei as perguntas que colocaram como uma espécie de filtro um tanto estranhas - o site mudou. É como se tentassem deslegitimar o pedido questionando coisas como "os pedestres podem ver os carros?" Sim, podem, mas eles vêm em alta velocidade e não param na faixa... Não tem espaço pra dizer isso. Estava com insônia aquele dia, mandei o pedido à 1h da manhã. Ao abrir minha caixa de e-mails na manhã seguinte, já tinha uma "resposta": a solicitação foi encerrada antes das 9h. Pela primeira vez em 17 anos sinto que nem a gestão básica da cidade tem participação popular. 

14/01/2018

Machismo cordial

Importante começar com o que entendo por feminismo, já que atualmente existe uma guerra pela verdade da definição que tende a tomar mais tempo do que a luta contra o machismo. Para mim, ser feminista não é colocar mulheres contra homens, é defender a igualdade de direito e consideração de ambos em todas as esferas. Para defender essa igualdade, é preciso combater o que faz com que as desigualdades se aprofundem. Considero que a igualdade de direitos entre homens e mulheres é o objeto da luta do feminismo, e que os machistas têm medo dessa igualdade, deixem isso claro ou não.
A maioria das manifestações que tentam diminuir mulheres são defesas de um privilégio sem o qual eles não sabem viver. Sem serem favorecidos, não se sentem fortes o bastante, então têm que manter o sistema injusto. Uso os termos feminista e machista para ambos os gêneros, pois considero que existem homens e mulheres que querem a igualdade e homens e mulheres que querem a manutenção da desigualdade. Espero de coração que discordâncias conceituais não sejam obstáculo para tentar entender ideias.
Isso esclarecido, gostaria de comentar uma característica bem brasileira do machismo, que se encontra também em outros preconceitos: a cordialidade. País de misturas, reconhecido pela sua riqueza cultural e aclamado pela tolerância, o Brasil é uma terra em que poucos se sentem à vontade dando vazão aos seus preconceitos explicitamente. Em geral, isso é feito de forma dissimulada, por meio de piadas que menosprezam o grupo alvo, ditados que reafirmam a desigualdade ou na forma de tratamento diferenciado.
Muito já foi falado sobre o racismo cordial, mas não tanto sobre outros preconceitos, como o machismo, o que acho compreensível a partir do momento em que o feminismo ainda luta para ser aceito sem tentativas explícitas ou disfarçadas de enfraquecimento da luta. Quando não atribuem a feministas uma “vontade de ser homem” ou de “inverter papéis”, dizem ser uma luta menor, que as feministas na verdade reclamam demais por algo que nem é tão importante, que existem vantagens mal compreendidas em um mundo machista, e que as mulheres deveriam reconhecer quão bom seria para elas mesmas serem discriminadas e restritas aos papéis de mulher submissa tradicional.
Proponho aqui a apreciação de alguns exemplos de postura, para aqueles que realmente prezam pela igualdade, que se consideram feministas e pensam que podem estar precisando de uma revisão dos próprios conceitos. Afinal, mesmo os mais conscientes cidadãos podem carregar preconceitos internalizados ao longo da vida, de forma inconsciente. Se essa pequena análise ajudar a combatê-los, o texto terá valido a pena.  
O machista cordial ri da piada do amigo, mas ri da amiga que faz a piada; tenta entender os problemas masculinos mais bobos, mas acha que os problemas femininos são todos bobos demais. O machista cordial se considera mais macho do que homem, e mesmo quando defende a inclusão da mulher na sociedade, é como se fosse caridade e não direito.
O machista cordial não concebe que uma mulher converse com ele sem interesse sexual. Chega a pensar que mesmo as mais sérias mensagens são, na verdade, uma forma de fazer-se admirar, que a mulher que argumenta está apenas querendo atenção. Ao machista cordial incomoda a imagem de um futuro em que mulheres têm poder, ou que homens “se rebaixem” a fazer o que as mulheres tradicionalmente tiveram como papel, como serviços domésticos ou mesmo ceder a vontades do(a) parceiro(a).
Ele acha que homem pode andar rasgado, mas que mulher que se preze tem que cuidar da aparência. Se uma mulher se mostrar forte ou poderosa, isso o incomodará e ele não resistirá a piadas sobre seu aspecto ou personalidade “masculinas”. A força, para ele, precisa sempre ser associada à masculinidade. Quando mulheres se mostram fortes, ele pensa que escolheram ser associadas ao que é o mundo dos homens.
Quem é feminista, por outro lado, dá o mesmo peso que se dá ao argumento de uma mulher ou de um homem; reconhece que uma mulher pode ter motivos para estar nervosa, que não é sempre culpa da TPM; é capaz de entender o conteúdo de um discurso inteligente de uma mulher como um discurso com interesses profissionais ou acadêmicos, não necessariamente como um pedido para ser cortejada. Tanto o feminista como o machista podem gostar de mulheres. O machista gosta delas como objeto sexual, o feminista pode até ter atração por elas, mas também consegue vê-las como seres pensantes.
Assim como no caso do machismo explícito, também existem mulheres que se entregam ao machismo cordial, perpetuando concepções ultrapassadas de seu próprio gênero e enfraquecendo a luta pela igualdade. Não digo com isso que uma mulher não possa querer ser bajulada, que não deva ser delicada ou vaidosa. Mas isso são escolhas que homens e mulheres devem ter, são personalidades individuais e não obrigações sociais coletivas.

Tenho certeza de que o apontamento dessas diferenças em si vai incomodar muita gente, mesmo eu não apontando o dedo diretamente a ninguém. Não é nada fácil quando alguém enxerga nossos preconceitos velados. Àqueles que, no entanto, discordarem da minha opinião, mas opuserem argumentos racionais, impessoais e bem explicados, respeito. Seja homem, mulher ou qualquer outra identidade de gênero que lhe caiba. Pois acredito que direitos todos temos que ter, apesar de diferenças intrínsecas ou inculcadas, e principalmente apesar do preconceito que desvia a razão de homens e mulheres com muito potencial de desenvolvimento coletivo. 

07/01/2018

Careta, mas feliz

Nunca fui muito carismática ou popular. Na infância sempre tinha uma ou outra amiguinha que conversava comigo, mas também tive minhas fases de ficar só. Já nessa época, eu me sentia meio alienígena, mas as coisas pioraram, como é clássico, na adolescência. Eu achava que tinha problemas, que era toda errada e mesmo que as pessoas tinham razão de não gostar de mim - se é que não gostavam mesmo ou se era eu quem as afastava. 
Eu tinha certeza de que eu não era alguém para se gostar, afinal eu não fumava, não bebia, não gostava de balada, não tinha tatuagem e namorava sério há uns mil anos tendo apenas dezesseis. Era uma chata com C maiúsculo. Amargurei, reagi e fiz muita besteira até uma coisa linda acontecer: cresci.
Depois daquela fase porre de achar que é preciso agradar todo mundo, percebi que o problema era meu se eu queria ser assim. E mais: que mesmo sendo chata desse jeito, ainda tinha gente que gostava de mim. Não muita - popular é uma coisa que nunca fui mesmo. Mas uma coisa mudou: eu não quero ser. Eu não ligo se não sou descolada; se não provoco admiração de quem quer posar de contracultura, mas sempre cria mini regras de comportamento no seu convívio. Eu não ligo de não ser o que as pessoas acham que toda pessoa como eu deveria ser. Eu não ligo se não tenho “história pra contar” porque nunca fiquei de porre (apesar de ter escrito quatro livros) ou se uma das coisas que mais gosto de fazer é organizar minhas coisas. Eu não ligo.

E por que escrevo isso? Simples: fiquei impressionada ao perceber que alguns adultos, que em tese deveriam ter abandonado essa coisa de serem aceitos pelo bando, passam boa parte do tempo analisando se fulano é legal, se ciclano tem um estilo de vida aceitável ou se o comportamento de beltrano é o que se espera de alguém como ele/a. Eu sou careta, mas sou feliz. Me pergunto se será feliz quem não consegue se livrar da preocupação com o que é aceito socialmente.