14/06/2015

As emoções e a capacidade de pensar

Mitos e tabus vão muito além da religião. Temos o pensamento cercado por assuntos proibidos e respostas prontas de defesa contra algumas opiniões. Na maior parte das vezes, as respostas não são nossas, mas foram incorporadas de um grupo que exerce pressão sobre nós por necessidade, força dialética ou até mesmo afeto. Geralmente damos a essas ideias nossos contornos e acrescentamos um pouco do que pensamos, mas sem a devida reflexão tendemos a ser somente propagadores do que os outros pensaram por nós e nós confortavelmente acatamos.
Desde crianças, no lar em que buscamos nossas primeiras referências de mundo, ouvimos chavões próprios de visões de mundo que carregam também seus preconceitos. Vimos em fábulas, filmes e livros diversas associações de valores a conceitos que sustentam formas fáceis de julgar as pessoas: se você não tem religião, você é imoral; se você se preocupa com sua aparência, você é fútil; se você reclama das coisas, tem problemas sexuais. Muita gente admite que mesmo os seus objetivos de vida mais duradouros nasceram nessa fase de fábulas.
Quando crescemos, podemos mudar de opinião com a ajuda de um outro grupo, um outro livro ou uma boa noite de reflexão, o que representa um grande passo rumo a uma análise mais imparcial das coisas. Às vezes, no entanto, apenas trocamos um conjunto pronto de concepções por outro e nos apegamos de forma igualmente emocional ao grupo que nos forneceu esse novo ponto de vista. Nessas relações emocionais é comum darmos muito mais crédito aos argumentos do nosso grupo e defendê-los de críticas antes mesmo de analisar se concordamos ou não com eles.
Essa noção de defesa grupal é saudável na medida em que muitas coisas precisam de posicionamento rápido, sem muito tempo para divagar; mas é perigosa na medida em que, passando o momento da necessidade de coesão, ninguém mais questione, nem no grupo, nem em seu próprio íntimo. Corre-se o risco até mesmo de perder o lastro do argumento inicial em nome da defesa incondicional de um totem, uma bandeira que encaramos como se fosse sagrada, e em torno desses totens criam-se novas regras de comportamento, novos chavões e atitudes tidas como absolutamente ideais ou desprezíveis.
Todos jogamos com esses elementos e também somos peças nos jogos dos outros. Em uma simplificação grosseira do conceito de capital em Bourdieu, é como jogar cartas em um jogo com regras próprias e sem fim definido. Quando nos dispomos a jogar, aprendemos o que é mais valorizado naquele contexto, o que tem mais chances de nos manter na partida e o que pode nos levar a perder muitos pontos. Quanto mais manipularmos os conceitos que o grupo valoriza, maior a chance de garantimos nosso prestígio e assegurarmos nosso pertencimento.
As regras e suas consequências são tão repetidas por pessoas emocionalmente importantes para nós que é difícil combater a sua força; e o medo de ser excluído de um meio que concentra a nossa vida emocional pode nos levar a acatar ideias com as quais jamais concordaríamos se tivéssemos apoio em outro lugar. Para a maioria das pessoas é muito importante fazer parte de um grupo, ser identificado como pertencente a ele, e isso as leva não somente a jogar o jogo intensamente, como a lutar para que as regras não mudem, os conceitos permaneçam e as ideias estagnem, mesmo se no meio do percurso elas se mostrarem erradas.[1]
É importante refletir, com relação ao grupo de que se faz ou se pretende fazer parte: qual é o limite entre a coerência com ele e a sua autonomia de pensamento? Quanto de conformidade ele demanda e até que ponto isso afeta a sua liberdade para se posicionar? Quão estreita é a borda que o grupo impõe ao espaço de discussões dentro dele? Isso varia absurdamente.
Quando começo colocando que “além da religião” existem outros mitos e tabus, apresento minha opinião de que as religiões cerceiam de diversas formas o pensamento autônomo: você pode interpretar o mundo, desde que não contrarie os dogmas; você tem liberdade, desde que siga as tarefas de um calendário pré-determinado; você tem opinião, desde que seja coerente com o que um determinado livro diz; você pode questionar, desde que isso não coloque a sua fé em dúvida – e isso te faria perder muitos pontos.
A religião é um campo em que as limitações estão mais claras, mas certamente não é o único que as impõe. Quando alguém grita palavras de ordem sempre que uma discussão se inicia, quando se mantém o hábito de tirar sarro de quem pensa diferente, quando um questionamento é exposto ao grupo como objeto de chacota e em diversas outras manifestações de verdade intocável, tabus se fortalecem e as limitações ao pensamento se tornam mais opressivas.
Com paixão pelo conhecimento e pela análise crítica das coisas, no entanto, essas limitações podem ser postas à prova e, um dia ou outro, muitas delas perdem nossa adesão. É possível avançar na discussão e quebrar tabus sem perder laços, mas esse processo exige tanta compreensão e jogo de cintura que o mais comum é que os grupos se rompam, pessoas saiam ou sejam excluídas, e a concepção de um ponto de vista diferente se inviabilize de vez.
É preciso libertar-se sempre, ao menos em pensamento, para poder adotar posturas mais inteligentes ao longo da vida. De outra forma, não nos distanciamos tanto dos que chamamos de fundamentalistas. Talvez nossos fundamentos sejam pacíficos, ou mesmo frutos de uma longa construção coletiva, mas a crença absoluta neles nos impede de aprimorá-los e paralisa o nosso próprio desenvolvimento. Pensemos bem quando nosso sangue subir diante de uma opinião diferente. Pode ser que ela seja absurda, ou pode ser que nossos instintos de proteção grupal estejam sobrepujando nossa capacidade de pensar.

[1] O filme “A Vila” ilustra de forma bastante interessante esse processo de manter aquilo que une o grupo, mesmo que seja prejudicial ao próprio grupo.