Mitos e tabus vão muito além da religião. Temos o
pensamento cercado por assuntos proibidos e respostas prontas de defesa contra
algumas opiniões. Na maior parte das vezes, as respostas não são nossas, mas
foram incorporadas de um grupo que exerce pressão sobre nós por necessidade,
força dialética ou até mesmo afeto. Geralmente damos a essas ideias nossos
contornos e acrescentamos um pouco do que pensamos, mas sem a devida reflexão
tendemos a ser somente propagadores do que os outros pensaram por nós e nós
confortavelmente acatamos.
Desde crianças, no lar em que buscamos nossas
primeiras referências de mundo, ouvimos chavões próprios de visões de mundo que
carregam também seus preconceitos. Vimos em fábulas, filmes e livros diversas associações
de valores a conceitos que sustentam formas fáceis de julgar as pessoas: se
você não tem religião, você é imoral; se você se preocupa com sua aparência,
você é fútil; se você reclama das coisas, tem problemas sexuais. Muita gente
admite que mesmo os seus objetivos de vida mais duradouros nasceram nessa fase
de fábulas.
Quando crescemos, podemos mudar de opinião com a
ajuda de um outro grupo, um outro livro ou uma boa noite de reflexão, o que
representa um grande passo rumo a uma análise mais imparcial das coisas. Às
vezes, no entanto, apenas trocamos um conjunto pronto de concepções por outro e
nos apegamos de forma igualmente emocional ao grupo que nos forneceu esse novo
ponto de vista. Nessas relações emocionais é comum darmos muito mais crédito
aos argumentos do nosso grupo e defendê-los de críticas antes mesmo de analisar
se concordamos ou não com eles.
Essa noção de defesa grupal é saudável na medida em
que muitas coisas precisam de posicionamento rápido, sem muito tempo para
divagar; mas é perigosa na medida em que, passando o momento da necessidade de
coesão, ninguém mais questione, nem no grupo, nem em seu próprio íntimo.
Corre-se o risco até mesmo de perder o lastro do argumento inicial em nome da
defesa incondicional de um totem, uma bandeira que encaramos como se fosse
sagrada, e em torno desses totens criam-se novas regras de comportamento, novos
chavões e atitudes tidas como absolutamente ideais ou desprezíveis.
Todos jogamos com esses elementos e também somos
peças nos jogos dos outros. Em uma simplificação grosseira do conceito de
capital em Bourdieu, é como jogar cartas em um jogo com regras próprias e sem
fim definido. Quando nos dispomos a jogar, aprendemos o que é mais valorizado
naquele contexto, o que tem mais chances de nos manter na partida e o que pode
nos levar a perder muitos pontos. Quanto mais manipularmos os conceitos que o
grupo valoriza, maior a chance de garantimos nosso prestígio e assegurarmos
nosso pertencimento.
As regras e suas consequências são tão repetidas
por pessoas emocionalmente importantes para nós que é difícil combater a sua
força; e o medo de ser excluído de um meio que concentra a nossa vida emocional
pode nos levar a acatar ideias com as quais jamais concordaríamos se tivéssemos
apoio em outro lugar. Para a maioria das pessoas é muito importante fazer parte
de um grupo, ser identificado como pertencente a ele, e isso as leva não
somente a jogar o jogo intensamente, como a lutar para que as regras não mudem,
os conceitos permaneçam e as ideias estagnem, mesmo se no meio do percurso elas
se mostrarem erradas.[1]
É importante refletir, com relação ao grupo de que
se faz ou se pretende fazer parte: qual é o limite entre a coerência com ele e
a sua autonomia de pensamento? Quanto de conformidade ele demanda e até que
ponto isso afeta a sua liberdade para se posicionar? Quão estreita é a borda
que o grupo impõe ao espaço de discussões dentro dele? Isso varia absurdamente.
Quando começo colocando que “além da religião”
existem outros mitos e tabus, apresento minha opinião de que as religiões
cerceiam de diversas formas o pensamento autônomo: você pode interpretar o
mundo, desde que não contrarie os dogmas; você tem liberdade, desde que siga as
tarefas de um calendário pré-determinado; você tem opinião, desde que seja
coerente com o que um determinado livro diz; você pode questionar, desde que
isso não coloque a sua fé em dúvida – e isso te faria perder muitos pontos.
A religião é um campo em que as limitações estão
mais claras, mas certamente não é o único que as impõe. Quando alguém grita
palavras de ordem sempre que uma discussão se inicia, quando se mantém o hábito
de tirar sarro de quem pensa diferente, quando um questionamento é exposto ao
grupo como objeto de chacota e em diversas outras manifestações de verdade
intocável, tabus se fortalecem e as limitações ao pensamento se tornam mais
opressivas.
Com paixão pelo conhecimento e pela análise crítica
das coisas, no entanto, essas limitações podem ser postas à prova e, um dia ou
outro, muitas delas perdem nossa adesão. É possível avançar na discussão e
quebrar tabus sem perder laços, mas esse processo exige tanta compreensão e
jogo de cintura que o mais comum é que os grupos se rompam, pessoas saiam ou
sejam excluídas, e a concepção de um ponto de vista diferente se inviabilize de
vez.
É preciso libertar-se sempre, ao menos em
pensamento, para poder adotar posturas mais inteligentes ao longo da vida. De
outra forma, não nos distanciamos tanto dos que chamamos de fundamentalistas.
Talvez nossos fundamentos sejam pacíficos, ou mesmo frutos de uma longa
construção coletiva, mas a crença absoluta neles nos impede de aprimorá-los e
paralisa o nosso próprio desenvolvimento. Pensemos bem quando nosso sangue
subir diante de uma opinião diferente. Pode ser que ela seja absurda, ou pode
ser que nossos instintos de proteção grupal estejam sobrepujando nossa
capacidade de pensar.
[1] O
filme “A Vila” ilustra de forma bastante interessante esse processo de manter
aquilo que une o grupo, mesmo que seja prejudicial ao próprio grupo.