21/07/2018

brasil


O “povo brasileiro” sempre foi uma categoria muito abstrata para que eu pudesse notar seus traços diariamente. Sempre tinha que acessar teorias e, então, ler na realidade sinais do que a teoria diz. Na prática, era identificação do que as pessoas ao meu redor fazem com o que um ou outro autor identificou, mas ainda tinha um bom nível de abstração.
Depois de morar fora durante três anos, a percepção mudou. Já na primeira vez que passamos férias no Brasil, alguns comportamentos gritavam – não estávamos mais habituados a eles. É uma experiência realmente diferente quando você se acostuma com o jeito de outro povo e volta a olhar para o seu. Não há livro que tenha tanta força.
O que me chamou a atenção nas férias foi o quão altos podemos ser em público – enquanto os franceses procuram ser discretos nos metrôs, cafés e salas de espera, brasileiros querem ser ouvidos por todos. Já no avião, às onze horas da noite, tinha gente de pé batendo papo alto nos corredores.  A pessoa sentada ao meu lado tentou, inúmeras vezes, fazer com que nossa viagem fosse uma jornada de 13 horas de papo furado, quando eu manifestamente queria dormir.
Até aí, quem pode dizer o que é melhor ou pior? Cada povo tem seus hábitos, seus costumes, seu comportamento coletivo. O que mais me pegou, no entanto, foi voltar o Brasil. Voltar a morar aqui me forçou a lidar com esse comportamento coletivo de forma que afeta a minha vida. Lembrei do que acontecia comigo antes de ir para a França, que eu pensava ser “o mundo” e que lá eu descobri que é muito mais “o Brasil”.
O que mais me incomodou e ainda incomoda aqui é que quando queremos lutar por alguma melhoria, estamos sós. A maioria dos brasileiros resmunga muito, mas faz pouco. Quem tem interesse em reivindicar qualquer mudança tem que se investir em procurar grupos organizados sobre aquele assunto e se dedicar, só ou com esses grupos, a remar contra a maré para ver qualquer mudança a longo prazo. A maré não luta, a maré publica indireta no Facebook e volta a não fazer nada. E isso é um círculo vicioso, afinal, o fato de que a maioria das pessoas não vai fazer nada serve de justificativa para qualquer um não fazer também.
Outra diferença grande com relação à França: brasileiro não fala na cara. Fala de um pro outro, reclama do amigo pra mãe, do marido pra amiga, dos políticos pra internet, mas não encara ninguém frente a frente. É a militância escondida, a autoafirmação no grupo que concorda, mas nunca o enfrentamento, nunca o pedido oficial de resolução das coisas. Brasileiro gosta de falar sobre os problemas, não de buscar soluções. E para alguém que quer buscá-las, isso pode ser mais solitário do que agir em um país em que ninguém fala a sua língua.
Tem coisas boas no Brasil? Certamente. Mas pra ser bem sincera, tenho que fazer muito esforço para identificar tendências coletivas que me agradem aqui mais do que as da França. No geral, ainda tento me convencer, especialmente quando se trata de política, institucional ou cotidiana, de que não fiz o pior erro da minha vida voltando.

14/07/2018

Regar ou represar


Sempre fui muito autocrítica, e isso fez com que muitas vezes eu deixasse de publicar diversos pensamentos por falta de certeza. Diante de tanta informação mal embasada, textos achistas e coisas que eu considero desserviços ao conhecimento, me retraí com medo de ser mais uma voz a inundar o mundo com desinformação.
Aí a gente fica em casa, quietinha, observando o mundo se desenrolar com base em coisa muito pior do que aquela que você poderia ter dito. E vê sem contribuir em nada com a direção que a coisa toma. Há pouco tempo me dei conta de que por medo de dizer alguma bobagem, fiz a maior delas: não dizer nada. E tenho a impressão de que muita gente boa, que contribuiria muito com o pensamento coletivo, também se cala por medo de dar uma escorregadinha em um mundo que é só lambança.
Aí a pessoa estuda, lê, discute, ouve, desenvolve e guarda. Guarda para que milhões de pessoas que não estudaram, não leram, não discutiram e não ouviram nada além dos próprios preconceitos inundem a cena pública com ideias que dão desânimo de sociabilizar. Pense: se a ideia foi bem pensada e você realmente acredita nela, não compartilhar não vai mudar nada – nem a sua vida, nem a dos outros. Se você escolher expô-la ao mundo, no entanto, existem algumas possibilidades:
1.    A ideia é boa e vai mudar a vida de alguém: pode ser na hora ou pode ser depois, quando a pessoa estiver lavando louça e pensando sobre a vida e coisas relacionadas ao que você disse. Às vezes precisa de tempo pra fazer uma conexão mental. Por mais que você não veja o resultado que provocou na hora, ele pode acontecer. O mundo ganha.
2.    A ideia é ruim e alguém vai contra argumentar.  Nesse caso, quem melhora é você, se souber refletir sobre a crítica. Você ganha.
3.    A ideia é boa, mas por algum motivo ela incomoda, não tem impacto, não muda nada no mundo. Você perdeu alguns minutos publicando, mas ainda tem a chance de refletir sobre a razão dela não ter tido impacto. Você ganha.
4.    A ideia é ruim e ninguém comenta. As pessoas olham torto para o que você disse e cortam laços com você, sem tentar explicar por que você está errado. Se você faz questão de ter amizade com gente intolerante, perde. Se não, ganha ao selecionar melhor seu círculo de contatos.
Não vejo ganho em compartilhar opiniões raivosas, racionalizações de preconceitos, e principalmente, informação falsa. Se o que você está pensando em disseminar for qualquer uma dessas coisas, não conta com meu apoio. Mas se for algo sobre o que pensou e que acha que é digno de apreciação, ganha-se muito mais oferecendo a outras pessoas do que somente à sua memória, que vai se apagar. 

06/07/2018

Público x privado ou Por que as pessoas discutem sobre ter filhos?


Em um casal, a discussão sobre ter filhos faz todo sentido. Quando as pessoas envolvidas na discussão são as que terão que cuidar da criança, não há dúvidas da sua utilidade. Mas a discussão sobre tê-los ou não tê-los costuma ultrapassar as fronteiras de quem tem qualquer interesse nisso. Vizinhos, colegas, parentes distantes, apresentadores de TV, jornalistas – em todo lugar existem teorias sobre se “as pessoas” devem ou não ter filhos.
A humanidade chegou a um ponto em que temos pessoas suficientes para não ameaçar a existência da espécie. Alguns dizem, aliás, que o excesso é o que ameaça. Caso as pessoas queiram se reproduzir, no entanto, também há lugar. As novas gerações também podem trabalhar e desenvolver coisas boas para o planeta. A questão é: não somos uma pequena comunidade de pessoas discutindo a preservação da espécie por meio de ter ou não ter filhos. É possível deixar que cada um decida por si só.
Ainda assim, o mundo insiste em querer decidir pelas pessoas, e se estende para outras questões igualmente irritantes: como as mulheres devem se comportar, como os religiosos devem viver sua fé, quais devem ser suas relações sexuais. São muitos exemplos de um fenômeno que faz parte da nossa sociedade, por mais desnecessário que seja: regular a vida privada alheia.
Sobre o que é domínio público, como a gestão do sistema de transporte e a manutenção da cidade, poucos se interessam; mas falar sobre o que o vizinho tem que fazer dentro da casa dele tira o sono. E mesmo que a pessoa nunca tenha levantado uma pedra para melhorar o bairro, ela sempre vai achar justificativas coletivas para o seu esforço em se meter na intimidade alheia.
Quem vai ter filhos ou não eu não sei – isso é uma decisão privada. Mas é urgente que se cultive publicamente a consciência do que é público ou privado, o respeito a escolhas individuais e a participação pública pela melhoria da sociedade. A próxima etapa na evolução da sociedade brasileira é deixar de ser uma nação de intrometidos para ser uma nação garantidora de direitos.