Mesmo
morando na França por três anos, sempre mantive contato com o que as pessoas
pensam e discutem no Brasil, especialmente pelo facebook. Alguns posts provocam
boas reflexões, eu concordando ou não com a opinião que defendem. Uma boa parte
deles, no entanto, dá um profundo desânimo com relação à maturidade do debate
político. E antes que você diga “também, esses esquerdopatas”, ou “deve ser
tudo coxinha”, saiba que é exatamente disso que eu estou falando.
Diante
de qualquer coisa que se fale, a tendência é a mesma: acusar alguém, geralmente
um partido ou tendência ideológica. Tem discursos rasos e preconceituosos, mas
boa parte deles é bem lapidada, pensada, palavras escolhidas com cuidado pra
dar mais credibilidade. Por trás de todos, a mesma coisa: “O que eu penso é
certo e quem concorda comigo é legal. Quem pensa diferente é errado e deve ser
humilhado.” Construir soluções coletivas parece coisa de outro mundo nesse
contexto.
Mesmo
quando as pessoas compartilham um sentimento comum com relação a algo, fazem
associações que garantam que elas sejam classificadas sempre no mesmo grupo.
Por exemplo: a difundida rejeição ao Temer. Um grupo o associa ao PT, outro ao
golpe contra o PT. Como ele é uma figura dúbia, fica fácil rejeitá-lo e
manter-se fiel ao próprio rótulo, mas com relação a outros assuntos menos
flexíveis gasta-se uma energia absurda pra manter a dualidade. Ora é necessário
fazer associações não tão fáceis, ora justificar o que o próprio grupo faz de
errado e apontar o dedo sobre o outro. Em todo caso, uma vez instalada, essa
chave de pensamento permeia a leitura de tudo, que às vezes nem é sobre
política. É uma constante afirmação de identidade no combate a outra, que não
pode jamais ser traída – afinal, o quanto humilhamos quem tem a outra
identidade, não é mesmo?
Senti
que ao longo dos anos aumentou a quantidade de gente que olha para os fatos em
vez de simplesmente transformar uma opinião em verdade. Ainda assim, o olhar
sobre os fatos é distorcido. Antes de ter opinião sobre qualquer acontecimento,
a pessoa confere quem está envolvido. Se é A, é horrível; se é B, deve ter uma
boa explicação. Pra dizer se a economia vai bem ou mal, escolhe-se os
indicadores que confirmam o que se achava antes de ver qualquer número.
Pra julgar se uma reforma é positiva ou negativa, não importam experiências
passadas ou de outros países, importa apenas quem propôs. Se é de alguém do meu
agrado, vai dar certo; se é de quem eu não gosto, vai ser um desastre. Os mais
cautelosos até leem o projeto – e pinçam aquilo que sustenta seu ponto de
vista, distorcendo e interpretando mal o texto, por mais que em outros
contextos sejam bons leitores.
Eu
discordo de estereótipos que colocam tudo na Europa como superior e tudo no
Brasil como coisa de vira-latas, mas nesse ponto a comparação é inevitável. O
que notamos aqui é que, apesar de existirem tendências ideológicas e
partidárias, a linha de discurso socialmente aceitável é bem diferente. Nem
todo mundo é tão ponderado, assim com nem todo mundo no Brasil é tão enviesado,
mas não dá pra ignorar que existe um tipo de discurso que define o tom do
debate e cria uma zona de conforto para que as pessoas continuem reproduzindo a
mesma fala. O sentimento de desajuste não se dá por não deixar claro de que
gangue se faz parte. Uma das coisas que mais vi criticarem nas conversas de
grupo que tivemos foi justamente a incapacidade de criticar o próprio grupo.
Apoiar alguém incondicionalmente é sinal de burrice. Se você realmente se
importa com o que o seu grupo faz, você tem que ser capaz de identificar
problemas e apontá-los, pra que corrijam.
É
claro que criticam também os outros grupos, mas tem que ser objetivo e jamais
deixar de acreditar que o seu grupo também tem problemas a serem corrigidos.
Isso quebra essa coisa de “nós os perfeitos x eles os burros” que ilude tanta
gente no Brasil. Nessa chave de pensamento, informação é uma coisa que tem que
ser analisada e debatida, não apenas usada pra enfeitar ou sujar nomes. A
partir do entendimento e mesmo do posicionamento ideológico com relação a um
assunto, discute-se quão bom ou ruim é o que está sendo proposto a respeito,
não a partir de quem propôs.
Mas
confesso que não conversamos tão frequentemente com as pessoas a respeito de
política. Nossa maior referência do modo de pensar coletivo é a mídia, que
vemos todo dia e, honestamente, parece seguir a mesma linha de discurso das
conversas cara a cara. Não é de se estranhar, dado que muita gente ajusta a
própria chave de argumentação a partir das notícias. Comparando a mídia /
internet dos dois países, as diferenças são bem evidentes. Uma comparação
simplificada:
Debate
sobre educação na França: revisão da carga horária.
Debate
sobre educação no Brasil: como o partido X quebrou a educação.
Debate
sobre economia na França: vantagens e desvantagens da União Europeia.
Debate
sobre economia no Brasil: como o partido Y quebrou a economia.
Debate
sobre eleições na França: propostas de combate ao desemprego.
Debate
sobre eleições no Brasil: quem vota em fulano é burro.
Existem
diferentes níveis intelectuais de discurso, mas o fundo é o mesmo. A mensagem
que se quer passar, com gifs ou textões, é a mesma. Passa longe de cutucar a
natureza dos problemas – eles são apenas suporte para que se cutuque a
reputação de alguém.
Tenho
a impressão de que a população brasileira está muito distante de conquistar um
papel no rumo do país, pois mesmo as manifestações mais massivas são por (ou
principalmente contra) times, não para que as coisas melhorem. É quase unânime
a opinião de que todos os grandes partidos são corruptos, e ainda assim eles
têm legiões de defensores que nada ganham com isso. É sempre “todos são
corruptos, mas nada se compara a… [coloque aqui a legenda que você tem como
demoníaca]”.
Durante
as eleições na França teve gente que rejeitou partidos, mas isso vem
acompanhado de argumentos. Mais do que isso, o posicionamento pode mudar! Não
existe um compromisso em defender sempre o mesmo grupo se esse grupo não faz
por merecer. Nenhuma legenda é sagrada, nenhum partido é a representação do
demônio na Terra. No Brasil, isso beira à superstição, como se fosse pecado
enxergar algo de bom em um partido que eu concluí que é ruim, como se fosse
fraqueza ver algo de ruim em quem eu defendo.
Quando
Manuel Vals passou à força uma medida que feria os princípios da base eleitoral
dele, ele perdeu a base. Não conseguiu nem ganhar as primárias para disputar as
eleições. No Brasil, teria sempre um grupo disposto a amenizar o que ele fez,
ou ao menos tentar tirar o foco dele, arrumando motivos para que olhassem para
os defeitos de outro candidato, comparando, vendo quem é mais podre. Quando
denunciou-se que François Fillon deu cargos à própria família sem que eles
trabalhassem, canais de diferentes tendências expuseram o caso, acompanharam a
investigação, ouviram os dois lados da questão e, sinceramente, não os percebi
encobrindo o que aconteceu. Foram até na cidade do sujeito, falar com quem
sempre o apoiou e – pasmem – pessoas que gostavam dele achavam que ele tinha
que ser punido!
No
Brasil, temos políticos completamente blindados pela mídia, que nunca têm seus
nomes em manchetes de jornal, mesmo que sejam investigados e condenados. Outros
ganham destaque ao menor sinal de acusação, e na falta delas, fabrica-se. Os
jornalistas tomam partido do início ao fim das matérias. A notícia vira sessão
de rechaço contra um grupo ou de justificação do que outro faz. Revistas
endemonizam e endeusam pessoas, redes de televisão tocam música dramática para
apresentar informações distorcidas. E o público faz a mesma coisa nas suas
pequenas mídias. Não tem nem sutileza na escolha de quem favorecer ou
prejudicar, e todo mundo percebe isso – no grupo de que não gostam, pois quando
é no próprio, jogam debaixo do tapete.
Diante
disso dá vontade de manter-se a milhares de quilômetros de distância, mas a
verdade é morar longe não faz com que deixemos de ser brasileiros e de nos
importar com o país. Nunca deixou de me dar tristeza ver como as coisas são
feitas, mesmo quando achei que poderia morar aqui pro resto da vida. As pessoas
que eu amo estão no Brasil, eu me identifico com os brasileiros, voltarei a
morar no Brasil e gostaria muito que o país amadurecesse.
Aí
você me diz: mas se eu sair da briga, eu perco. Se eu não fizer o que eu estou
fazendo, o outro grupo ganha. Verdade. Se você quiser dedicar a sua vida a
tentar ganhar essa briga, não pode sair dela. A pergunta que eu coloco é: quem
vai ganhar isso? Será que alguém do outro grupo vai um dia acreditar em alguma
coisa do que você diz, sendo que você tem os mesmos vícios? Será que um dia vão
acordar e dizer “Nossa, é mesmo! Você distorceu fatos, omitiu eventos, exagerou
nas coisas que dizia sobre mim, mas na verdade só estava querendo salvar o
país! Agora eu entendo!”
É
óbvio que não. A não ser que exista um compromisso em analisar criticamente
tudo o que é apresentado, independente da tendência ideológica, não há
credibilidade à vista. A não ser que se desconstrua discursos viciados e
se tente construir debates bem fundamentados, vai ser argumento ruim contra
argumento ruim, não levando a nada além de momentos de raiva e euforia.
Analisar
as coisas com atenção dá trabalho. Exige consultar sites oficiais e ler
informações a despeito do que a mídia apresenta como análise, porque ela é a
mais viciada de todas. Exige questionar, ser chato e persistir a despeito da
quantidade de vezes que não der em nada. Não tem tempo ou cabeça pra fazer isso
com relação a tudo? Escolhe algo que lhe seja caro, algo que lhe motive a dar a
devida atenção, a ter compromisso com a verdade. Vale muito mais a pena focar
em um assunto e discutir direito do que posar de gênio sobre todo tipo de tema
sem mudar nada.
Tem
quem tenha questionado o movimento passe livre quando fizeram grandes manifestações
contra o aumento do preço da passagem, dizendo que era “só por 20 centavos”. A
verdade é que esse grupo vinha trabalhando há anos a questão do direito ao
transporte, com um longo e cansativo trabalho de formiguinha e, por questões
que se aproximam mais de contexto do que de poder, teve nessas manifestações um
ponto alto. Esse é o tipo de militância que eu respeito: defender uma causa
profunda e persistentemente, independente dos partidos envolvidos.
Infelizmente, o que veio na carona das manifestações foi uma explosão de
opiniões mal fundamentadas pra defender times. Essa é uma das coisas a despeito
das quais os reais militantes continuam lutando.
Na
briga de gangues os assuntos restam mal analisados, mal trabalhados e
abandonados a quem redigir e apresentar um projeto qualquer. A massa pega o
projeto, destrincha o que pode ser usado pra brigar e segue batendo boca
enquanto as coisas continuam sendo decididas apesar dela. Pergunto: qual é a
importância de ganhar essa briga? Qual é a importância de se identificar com
uma corrente ideológica sem trabalhar para que pelo menos um dos princípios que
a definem seja transformado em política pública? Qual é o sentido de ganhar
dezenas de discussões de facebook e deixar que o dinheiro público seja mal
usado, às vezes na própria empresa em que se trabalha?
Tenho
profundo respeito por associações e movimentos que têm um foco e uma luta. Eu
mesma não posso me vangloriar da minha trajetória particular. Sempre estive
mais concentrada nas minhas questões particulares, por mais que leia planos de
governo, cobre vereadores e encha o saco da administração municipal (de
qualquer partido) pra que faça o seu trabalho. Democracia e inclusão são duas
questões que me são caras, e eu já fiz contato com candidatos de partidos
antagônicos em nome delas. Não tenho problema nenhum em elogiar ou criticar
nenhum deles, porque meu compromisso é com meus ideais, não com nomes, e espero
que meus amigos sejam capazes de me criticar com base em ideias, não em
rótulos. Mas se vier querer discutir comigo que partido X ou Y é deus ou diabo,
não perca seu tempo, sou ateia.