21/09/2018

Seria a fé intolerante uma jogatina espiritual?


Uma parte importante da crença é o apego à esperança de que algo sobrenatural interfira na própria vida, mudando aquilo que não se consegue mudar por esforço, inteligência ou sorte. É a ideia de que se a esperança for muito grande, ela será concretizada. É o medo de que ao perdê-la, seja por desânimo ou reflexão, a pessoa não seja mais uma das contempladas quando a mágica finalmente acontecer. Especialmente quando o seu deus não tolera desistentes, o questionamento tem um preço muito alto, fazendo com que a dúvida seja enterrada junto com outros sentimentos ameaçadores de todas as promessas invisíveis.
Mexer com a esperança de ser premiado nessa loteria sentimental é delicado. É como pedir a um jogador veterano que não pague o próximo bilhete – provavelmente ele ficará aterrorizado com a ideia de que seu número finalmente saia e ele perca o prêmio bem quando desistiu. Se ele já tiver ganho alguns reais como prêmio de consolação, então, estaremos mexendo com algo de cuja possibilidade ele acredita ter evidências.
Pedir para considerar o ponto de vista ateísta é pedir que um novo caminho de esforço e incerteza seja traçado. É dizer que não adiantou nada ser bonzinho o ano inteiro porque Papai Noel não existe e o seu pai não tem dinheiro pra comprar presente. É reeducar o pensamento, mexendo com sentimentos dos mais atemorizantes.
Às vezes, a própria existência de ateus é tida como ameaça, como uma possível causa para a demora em receber o prêmio, como se enquanto todos não acreditassem na mesma coisa, o mundo não tivesse os critérios para que a mágica acontecesse. Ademais, ter alguém para culpar é um fator que alimenta a fé, que alimenta a crença de que é possível, um dia, aquilo o que sempre esteve dentro da sua cabeça, e em nome do qual você lutou até contra as maiores evidências, ser realidade. É o famoso enredo de tantos livros e filmes: o mocinho é desacreditado, enfrenta desafios, persiste e quando está quase perdendo, vira o jogo e derrota o bandido.
Seria bonito, se não fosse ficção e se essa ficção não prejudicasse milhões de pessoas que apenas exercem o direito de não jogar na loteria.

07/09/2018

Empatia


Quando a gente é o que o status quo pede que sejamos, por conformação ou por coincidência, a discriminação passa muitas vezes despercebida. Escolher feminino ou masculino em uma lista não é um problema para quem se identifica com o gênero biológico; escolher a cidade em que se nasceu em uma lista fechada não é problema para quem nasceu no único país considerado no formulário; dar o endereço em uma ficha de inscrição não é problema pra quem tem um contrato assinado que lhe garante moradia.
Empatia é a capacidade de perceber os problemas que esse tipo de limite pode causar. Ser “cidadão de bem” é ser capaz de perceber que existem pessoas que não se encaixam em classificações fechadas e sofrem com isso; é ser capaz de conceber um sistema mais inclusivo em vez de ficar chorando na internet que o politicamente correto fere o modelo a que você se acomodou.
Será que todo formulário precisa ter gênero? Será que uma lista de cidades não pode incluir “cidades de outro país” como uma opção? Será que o endereço indicado não pode ser um e-mail, nessa era em que quase todo documento pode ser virtual?
Os mais resistentes acharão as circunstâncias particulares a dar como exemplo para opor à argumentação. “Ah, mas no caso de exame de câncer de mama...” “Ah, mas se precisar enviar algo por correio”. O “e se” é um indicativo de hipótese. As pessoas que têm empatia para pensar no outro obviamente terão capacidade de pensar em situações particulares e entendê-las. Será que o inverso é verdadeiro? Quem tem criatividade para ficar pincelando situações que justifiquem a exclusão terá capacidade de se colocar no lugar de quem está sendo excluído e ajudar a pensar em sistemas mais completos?