18/11/2018

Esforço e sorte


Bons resultados em qualquer coisa dependem de muitos fatores, entre eles sorte, contexto, concorrência, oportunidade e mérito. Os dois últimos, no entanto, parecem ter um papel crucial nas concepções de mundo de extremos políticos. Enquanto esquerdistas extremos tendem a atribuir às oportunidades de vida um peso muito maior do que qualquer outro fator para a determinação do sucesso de alguém, os direitistas extremos tendem a jogar toda a explicação para a situação das pessoas no esforço que essas pessoas fizeram (ou deixaram de fazer) para chegar ou não a algum lugar. Enquanto os primeiros tendem a vitimizar radicalmente os pobres, os segundos tendem a culpá-los, e isso extrapola os resultados econômicos.
Chamou minha atenção, um dia, a oposição de duas falas em relação à capacidade de fazer escolhas. Uma mulher lamentava-se amargamente do fato de a sua escola não ter mostrado possibilidades de carreira quando era adolescente. Dizia que por isso ela havia feito uma escolha ruim e estava insatisfeita no trabalho. Diante dessa fala, um moço satirizou a sua postura, dizendo que isso era culpa dela, pois ficou esperando que a escola lhe desse todas as respostas. Por um lado, uma pessoa se vitimizando pelo que o meio não lhe proporcionou; por outro, uma pessoa condenando-a por não definir o próprio destino a despeito do meio.
Eu conhecia aquele moço que fazia a crítica. Uma das características que mais se destacava nele era a “inteligência” - uma capacidade de decodificar tarefas e responder a desafios com velocidade acima da média. Quase toda a formação dele foi no colégio Bandeirantes. Aos que não conhecem, esse é um dos colégios mais caros de São Paulo, em que crianças são treinadas desde pequenas a produzir resultados, por meio de metodologias de ensino que atinjam desde o aluno mais estudioso até aquele que se encosta na postura de rebelde. Tem feiras de exposição sobre profissões, conselheiros, psicólogos e todo tipo de recurso que alguém pode ter para desenvolver-se e fazer escolhas.
Achei muito curioso como, após ter recebido toda ajuda possível do meio, ele considerava que ninguém deveria precisar dela, mas simplesmente descobrir o mundo por si só. O tom de sátira na sua voz deixava claro que ele se considerava intrinsecamente mais inteligente do que a moça insatisfeita, e parecia gozar de certo prazer com o fato dela estar em uma carreira ruim, como um castigo por não ser tão “inteligente” como ele.
Não cheguei a conhecer a moça para saber se ela não teve outras oportunidades de procurar uma boa carreira. Acho muito difícil que a única referência existente na vida dela tenha sido a escola. Sem saber que oportunidades ela teve e se soube aproveitá-las não dá pra dizer muita coisa. Talvez ela não tenha procurado bem, mas talvez tenha se dedicado muito às coisas erradas, por serem as únicas que foram apresentadas.  
Quanto ao moço que acha que o meio não tem influência, mas nunca esteve em um meio árduo, ainda deve se considerar altamente inteligente por chegar tão rapidamente a uma conclusão simplória sobre outra pessoa, sem levar em conta o contexto, as possibilidades de desenvolvimento ou qualquer outro fator que não fosse o próprio preconceito.
No final, acho que nos cabe lutar pela democratização de boas oportunidades, equiparação de condições e valorização do esforço. Enquanto essa utopia não se concretiza, é bom tomar cuidado com análises mal pensadas, ainda mais depois de ter tido tantas oportunidades ao ponto de iludir-se quanto ao mérito de tudo o que se é capaz.

02/11/2018

Ego virtual


A plateia criada pelas redes sociais mostrou o quanto muitas pessoas gostam de humilhar umas às outras. Na internet é raro o comentário, notícia, post ou blog que não conte com os famosos trolls ou pessoas que parecem sentir grande prazer não apenas em "vencer" uma discussão, mas em fazer com que seu opositor se sinta mal, seja exposto ao ridículo e humilhado publicamente. A máxima "não leia os comentários" acaba servindo de proteção a uma tendência que encontrou espaço livre pra se manifestar na rede: o sadismo, praticado até mesmo por aqueles que se concebem como o estandarte da moralidade na vida cotidiana.
Há desde trollagens “puras”, em que o autor quer apenas criar confusão por quaisquer meios que encontrar no momento, até o desvelar dos preconceitos mais reprimidos. Um exemplo é o machismo, que aparece quando uma mulher tenta colocar um argumento e recebe respostas como “é mal comida”, “volta pra cozinha”, “precisa dar” e outras cordialidades. Muitos homens não estão preparados para aceitar mulheres como debatedoras e tentam humilhá-las afirmando publicamente que o seu papel é privado, de fazer sexo com o homem e de servir ao homem, cuidando da casa ou das suas necessidades. No mínimo, as querem fora do debate, que estaria reservado aos seres pensantes que, na sua concepção, têm que ter um pênis. Outro exemplo é a homofobia. Insinuar que o amigo é gay, chamá-lo de bicha, veado ou qualquer outra piada com foco na orientação sexual é outro exemplo de problema comportamental que existe há muito tempo fora das redes e continua nela.
Se fosse apenas coisa de algumas pessoas com problema de autoafirmação seria simples, mas a verdade é que a tendência vai além. Machismo e homofobia são problemas por si sós, mas a vontade de humilhar e o prazer em fazer sofrer está espalhado também entre os mais politicamente corretos. O anonimato da rede esconde o quanto a pessoa que leu nossa ofensa ficou afetada – fazemos o ataque, não vemos o sangue. É fácil pintar um ser insensível em quem pensa diferente e ferir mais do que os preconceituosos mais escrachados.
Às vezes a tática é mais sutil, mais “sofisticada”: levar o outro à contradição; apontar seus erros; usar o argumento do outro contra ele próprio para “dar o troco”; caçar e ridicularizar erros de escrita; usar fatos da vida pessoal que estiverem à mão pra tentar montar um arcabouço de sofrimento. Quando não estamos vendo o outro sofrer podemos sempre imaginar um rabo e uns chifrinhos nele e assumir que a nossa estratégia de combate é legítima, afinal, estamos lutando contra o mal, não contra uma pessoa. Não há a evidência, por discussões virtuais, de que o outro sofre, de que também pode estar nessa busca desenfreada por aprovação social, de que também pode estar com essa agoniante necessidade de humilhar para sentir que tem um lugar no mundo.
Não há como negar o ego, mas há como refletir sobre como lidamos com ele, em situações virtuais ou reais, que quase se confundem.  Não dá, tampouco, pra conhecer pessoalmente cada pessoa com quem discutimos no mundo virtual. Mas dá pra se relembrar periodicamente que por trás de cada interação existe uma pessoa – que discorda, que não sabe tudo e que pode ser extremamente arrogante e desagradável, mas que muito provavelmente sofre e que poderia reagir melhor a quem tivesse um pouco de empatia pelo lado humano dela.