E se, diante de um estímulo intelectual, não
recorrêssemos imediatamente ao que nos foi ensinado? E se, ao invés disso,
refletíssemos sobre um universo maior de possibilidades que esse estímulo
oferece?
Por exemplo: formei-me em Ciências Sociais.
Em uma das aulas, aprendi como Durkheim define solidariedade mecânica e
orgânica e a tendência de passagem de uma a outra. Assim, é fácil para mim,
diante de sinais da divisão e especialização do trabalho, voltar a essa teoria
e sentir-me satisfeita com a explicação aprendida.
Mas e se, ao invés disso, de recorrer
imediatamente à conclusão de outro, eu me permitir um pensamento um pouco mais
livre, uma análise mais solta e, por isso, com potencial de se aproveitar de
elementos do meu conhecimento (não só dos de Durkheim) para gerar um novo
conhecimento?
Devo eu desprezar todas as minhas
experiências e aprendizados em nome do reconhecimento que outra pessoa teve em
desenhar teorias sobre o que me intriga? Devo anular de antemão qualquer
tentativa de interpretar diferente, porque alguém com estatura intelectual
muito superior à minha já escolheu a resposta? Afinal, o conhecimento não é
construído justamente por quem se permite ir além? Ou estamos em uma linha evolutiva
estreita, em que não posso sair um pouquinho fora do caminho estabelecido para
pensar? Um pensamento perde validade por não ter bebido antes (e talvez se
viciado) da água dos antigos?
E seu eu não quiser fazer alusão nenhuma, nem
favorável nem contrária, à teoria das solidariedades de Durkheim? E se eu
quiser usar a minha imaginação e capacidade de análise crítica para enxergar o
máximo possível de aspectos relacionados à especialização do trabalho, para, aí
sim, remeter à teoria já construída e me permitir relações mais complexas?
Não digo com isso, de maneira alguma, para
rejeitar o conhecimento construído. Penso, aliás, que ele deve ser consultado
para comparação com nosso próprio raciocínio; no entanto, temo que muitos
estudiosos anulem a própria capacidade de análise crítica em nome das teorias
já construídas. Temo que seja um vício olhar a realidade com olhos alheios e
passar a vida a brincar de encaixar peças – fatos em teorias, sem se permitir
olhar uma peça e imaginar o seu melhor receptáculo. Se for preciso procurar o
que já existe ou inventar algo novo, que seja com a consciência de uma análise
própria, ao menos um exercício mental autônomo realizado.
Com isso em vista, extrapolo o raciocínio
para uma esfera ainda mais difícil de exercitar a liberdade: a crença. Fiquei
tentada a escrever “a religião”, todavia esta é apenas um sistema de
transmissão e manutenção de algumas crenças, ele mesmo questionado e
confrontado, de dentro e de fora. Já a crença em si, mais subjetiva, mais
íntima, uma conclusão acomodada no indivíduo acerca de algum aspecto da vida ou
da morte, essa é mais resistente à liberdade de análise. Seja fruto de
convencimento, criação ou lavagem cerebral, a crença mexe com emoções que
muitas vezes brigam com a liberdade da razão de se desenvolver no pensamento.
E se eu enfrentá-las e me permitir pensar? E
se, no meu íntimo, em que não há líder espiritual, ente querido ou polícia
científica a me coibir, eu abrir os olhos para contradições, fatos, hipóteses e
possibilidades? Há um grande risco de amadurecer. Há um grande risco de que
esse amadurecimento mude meu comportamento ao ponto de não ser mais suportável
aceitar polícias morais a me pedir pra pensar diferente. Há o risco de pensar.