Processo
Ao longo de sua história, o Estado brasileiro
esteve fortemente ligado à igreja católica, que ainda hoje luta para que sua
influência seja sentida em legislações no mundo todo e particularmente em
países de maioria católica, como o Brasil. Apesar
dessa influência, no entanto, a mesma instituição se envolveu em escândalos que
colocaram em questão não apenas sua organização interna, como também suas
recomendações públicas. Paralelo a esse afastamento do poder, o país veio
passando por um processo longo, mas já perceptível, de laicização. Se por um
lado os feriados ainda celebram Nossa Senhora Aparecida, Sexta Feira Santa e
Páscoa, por outro acontecem ações como a retirada de símbolos religiosos de
casas de poder, fruto de reivindicações pelo Estado Laico.
A laicização do Estado não significa, no entanto,
a laicização do povo. Apesar da fé não ser oficialmente considerada como o
“pacote de valores obrigatórios” tanto quanto há algumas décadas, a
religiosidade popular continua em alta. Com a queda da estima do catolicismo,
no entanto, quem ganha destaque são as congregações evangélicas de massa, com
grande apelo emocional, oratória intimista e a mesma base religiosa da nossa
colonização: o cristianismo.
O que talvez não esteja claro para todos os
fiéis, todavia, é que essas igrejas não estão livres do caráter político que a
católica teve em todos esses anos. Aliás, ouso dizer que esse caráter é mais
forte, graças a um direcionamento consciente à prosperidade e ao ganho de
poder. Mais do que uma opção de culto desvinculada do mercado, muitas igrejas
já nascem como empresas de fé, geridas e sustentadas como uma instituição
econômica. Outras se transformam para não “perder fiéis” para as primeiras que,
não à toa, são muito atraentes para quem busca conforto psicológico. Nelas, o
discurso convincente visa o dízimo; o dinheiro recolhido paga técnicas de
oratória, gestão, marketing, programações de rádio, televisão, jantares com
políticos e amizades influentes;
essas técnicas e contatos permitem mais discursos envolventes; esses discursos,
mais dinheiro...
O ciclo de investimentos coloca nas mãos de uma
cúpula mais política do que religiosa as ferramentas para manipular não apenas
quem acredita nela. Permite controlar a casa de poder que regula as vidas de
quem não acredita. Permite mexer, votar e vetar leis que interferem nas vidas
mesmo de quem acha tudo isso enganação. Tanto é que mesmo um candidato que
abertamente apoia a igreja católica não arrisca deixar as igrejas evangélicas
de lado durante a campanha.
Basta zapear pelos canais de televisão ou
estações de rádio para perceber o investimento que é feito para manter
programas religiosos no ar. Esse investimento todo busca retorno e não
sobrevive sem ele. Meios que teriam
o papel de informação e formação são usados ostensivamente para pregações das
mais teatralescas, com afirmações de verdade sobre curas ensaiadas e milagres
de holofote. Somado ao fato de que a igreja católica também não deixou de
utilizar esses meios para manter sua hegemonia, temos uma variedade de canais
proselitistas disputando espaço com publicidade e entretenimento, e muito pouca
atenção a conteúdos que geram reflexão e conhecimento.
O que vem acontecendo é uma empreitada de
ocupação da tribuna por representantes de templos-empresas, como a conhecida
bancada evangélica, que ora veste a máscara política, ora a religiosa, de
acordo com seus interesses em cada situação. Para acumular votos na urna,
promessas bíblicas a seus seguidores; para combater outras denominações
religiosas, o caráter laico do estado. Pelos seus discursos e projetos, fica
claro que sua posição é religiosa, mas o combate ao catolicismo no poder
público inspira posicionamentos aparentemente neutros, no fundo combativos de uma
denominação pela outra. Representantes evangélicos rejeitam os resquícios da
influência católica, como por exemplo, a atual configuração do calendário de
feriados.
Quando é de interesse de ambos, no entanto, junta-se a ela como iguais.
Direitos
Poderíamos aqui nos incomodar:
mas eles têm todo o direito de se organizar e de lutar por seus ideais; não
podemos suprimir esse direito! Verdade. Não podemos e nem é a proposta desta
reflexão proibi-los de se organizar. Assim como as organizações de ateus e agnósticos,
os católicos e qualquer outro grupo que compartilhe das mesmas ideias, os
evangélicos têm esse direito. O que nenhum grupo tem é o direito de corromper a
estrutura pública para colocar-se acima da lei e da democracia, como é o caso
da proposta de Emenda Constitucional que prevê a anulação de decisões do STF,
com vistas a combater decisões laicas.
O que
também não deveriam ter é o privilégio de não serem tão questionados como
outros grupos por ter uma rotulação religiosa. Aparentemente, o temor que
circunda assuntos místicos não afeta somente quem segue as pregações, mas até
mesmo não religiosos, que enxergam um escudo anticríticas em grupos com rituais
próprios e tradições seculares. Essa áurea de intocabilidade faz com que haja
uma desigualdade injusta, que dificulta um debate aberto sobre as estratégias
políticas desses grupos.
Não é difícil encontrar pessoas que se sentem no
direito de atacar a todos e de não serem atacadas por ninguém, especialmente se
o assunto em discussão desperta paixões. O que acontece quando o assunto é
religião, no entanto, é que existe uma pseudoetiqueta segundo a qual os
religiosos podem fazer proselitismo, podem bater na porta da sua casa domingo
de manhã e podem ostentar símbolos religiosos pelo corpo e pela arquitetura da
cidade, mas os ateus não. Essa pseudoetiqueta encara como falta de respeito até
mesmo a afirmação de que deus não existe;
ela inviabiliza debates muitas vezes políticos, de interesse comum, dando
espaço para abominações políticas serem levadas a cabo sem grande resistência.
Mais do que isso, não são todas as religiões que gozam desse
privilégio. É aquela que nossos colonizadores trouxeram e que até hoje é
imposta em eventos públicos como prioritária, pressuposta como a fé de qualquer
plateia diante da qual se esteja, celebrada como se celebrasse um valor
universal, sem consultar a verdadeira orientação dos presentes (para não correr
o risco de se dar conta de que nem todos são cristãos). Umbandistas não são tão
bem vindos em suas manifestações; budistas não podem recitar seus mantras na
abertura de um evento laico; seria tido como absurdo pressupor que todos em uma
plateia são hindus. Mas rezar um Pai Nosso, vestir um crucifixo e manter a
frase “Deus seja louvado” no nosso papel-moeda, com isso poucos se incomodam, e
não raro esses poucos são taxados de radicais.
Ainda não findou o processo de submissão iniciado na
colonização. Só que dessa vez o cenário é outro, as estratégias mudaram e a
aparência dessa dominação é engolida por não parecer com o que se vê nos livros
de história. Aliás, é exatamente essa visão do passado como a única época em
que a dominação poderia acontecer que faz com que, entre os cristãos, a Igreja
Católica seja mais cuidadosa nas suas empreitadas. Ela figura na Inquisição, ela
figura em acusações midiáticas de pedofilia. Ainda exerce poder sim,
especialmente nesses momentos cotidianos que, despercebidamente, vão criando um
contexto de exclusão do diferente. Mas não se compara à ousadia de um grupo que
ainda não entrou para os capítulos de livros escolares: a cúpula de poder
evangélica. Fique claro que não falo de seguidores da denominação evangélica, e
sim dos que manipulam poder político e financeiro para impor pontos de vista e
proibir modos de vida em nome de uma fé que muitos estimam.
Atentar para
prevenir
A rede está recheada de exemplos, presentes no discurso ao
vivo também, de citações bíblicas sendo usadas agressivamente contra
crenças/descrenças alheias. A Bíblia abre possibilidade para inúmeras
interpretações de seu conteúdo. Não é à toa que, baseadas nela, tenhamos muitas
denominações religiosas diferentes. Para uns, a tolerância e o amor; para
outros, guerra e opressão. Não há consenso, há brechas para maravilhas e
atrocidades, isso quando as pessoas que a utilizam realmente fizeram o
exercício de lê-la. Geralmente, a leitura de alguns trechos faz com que a
pessoa se sinta autorizada a falar em nome dela e atribuir legitimidade ao
próprio discurso. Assim, não podemos tomá-la como referência para as atitudes
de todos os cristãos. Resta-nos atentar ao que as pessoas fazem no dia a dia,
perceber qual é a sua postura com relação à liberdade e o quanto as suas
escolhas afetam nossas vidas, dado que a política que nos governa é
absurdamente influenciada por escolhas de toda coletividade, inclusive de
pessoas que, ao desejar exercer sua fé, são tidas como alvo fácil de
politicagem.
Diferentes
denominações, ambições semelhantes
Não podemos olhar apenas para os protagonistas da nossa
história documentada. Precisamos perceber o contexto, a base cultural e
comportamental que fez com que esses protagonistas alcançassem o que queriam,
sob o risco de sofrermos a mesma repressão por um grupo diferente. Só mantendo
em mente as estratégias adotadas por grupos de poder do passado para exercer a
dominação é que seremos capazes de evitar que novos grupos repitam o processo.
Um aspecto cultural e comportamental fácil de identificar é o
autoritarismo incorporado à rotina, o respeito ao “dotô” que ostenta roupas e
símbolos diferenciados, o patriarcalismo, a dependência que tantas famílias
sempre tiveram de um senhor dono de terras, dono de poder, dono de favores. Se
nossos livros focam nos favores materiais, não podemos ignorar os favores
espirituais, que estão mais vivos do que nunca.
A esses “dotôres” uma multidão foi ensinada a se curvar
“humildemente” em gratidão, nunca a atribuir-lhe responsabilidade pelo cargo
ocupado ou cobrar diretamente as benfeitorias como obrigação. Até hoje, depois
de muita educação política, essa dominação se faz presente: quantas pessoas
bradam que os políticos têm que fazer mais, compartilham mensagens de
indignação e conclamam a população a reclamar? Muitas. Quantas dessas pessoas
já cobraram diretamente esses políticos de que reclamam? Postas diante do “dotô”
de terno e gravata em um ambiente de poder, é mais provável que peçam um
autógrafo do que cobrem sua obrigação.
Isso é herança do modelo coronel-padre-resto da população. Só
que agora temos também, e talvez mais forte, a figura do pastor. Quantas notícias
de enriquecimento particular com os dízimos não são ignoradas por aqueles que
continuam frequentando e sustentando os seus shows? Seu discurso convence, seu
espetáculo comove, a alusão à fé que se tem sela a predisposição a fechar os
olhos ao que não convém.
A despeito disso,
existe uma massa crítica, um grupo pequeno, mas crescente, que não se submete
da mesma forma que os antigos se submetiam. Esse grupo incomoda não apenas o
“dotô” que perde bajuladores. Quem abre mão de parte de seus recursos todo mês
sob a promessa de vida eterna precisa acreditar que aquilo faz sentido, em nome
da própria autoestima; quem se ajoelha e se humilha diante do moço de terno e
gravata precisa acreditar, lá no fundo, que isso lhe trará algum benefício, em
vida ou após a morte, sob o risco de sentir-se humilhado. Pessoas que não se
submetem e ainda assim conseguem coisas incomodam. Pessoas que não têm fé e que
ainda assim conseguem manter o próprio sustento ameaçam a lógica a que eles se
curvam, põem em risco a justificativa para a auto-humilhação que valorizaram
por toda a vida, desmoralizam o pai que ensina o filho que ser cordeiro é o
caminho da salvação.
Thomaz Kawauche explica bem esse processo de guerra pela
manutenção de estruturas de plausibilidade, que podemos identificar na oposição
de argumentos pró e contra religião que se multiplicam pelos espaços de
discussão. O que preocupa não são
esses embates de ideias, mas o que esse desespero pela manutenção da estrutura
de plausibilidade da própria crença pode levar as pessoas a fazerem. A recente
reação ao filme que desrespeita Maomé é um exemplo da estima por essas
estruturas de plausibilidade. Em diferentes intensidades e por diferentes
maneiras, muitos grupos tentam fazer com que o mundo se transforme naquilo em
que ele “deveria ser”, dentro do seu ponto de vista. No Brasil, uma bancada
religiosa na política se apresenta como a ferramenta perfeita para quem quer
que o mundo seja uma confirmação daquilo em que acredita, dispensando reações
violentas, ao menos enquanto essa exigência de plausibilidade não for muito
rigorosa.
As mobilizações pelo Estado Laico não são apenas um direito,
como um sinal necessário de atenção a ameaças à nossa liberdade. É preciso que
exista uma preocupação pública com a laicidade do Estado, com a liberdade de
todo e qualquer grupo de exercitar suas crenças ou não crenças, respeitando as
demais. Do contrário, muito poder continuará sendo mobilizado para impor pontos
de vista, e corremos o risco de, “por educação”, nos acostumarmos com a ideia
de uma sociedade em que as regras de um grupo determinarão os modos de vida de
todos.
Ouço muita gente dizendo que a militância ateísta é um
exagero, que as religiões, no fundo, só fazem o bem para as pessoas, ou que o
Brasil sempre será pacífico porque sempre foi. Se pensarmos bem, bom ou ruim é
uma questão de ponto de vista. Não podemos ser ingênuos com relação a grupos
“religiosos” que pregam o bem em última instância, achando que o bem deles é o
bem de todos, e que esse bem implica suprimir a liberdade de muitos que não
representam ameaça real a ninguém. É preciso ter cuidado para não ignorar
movimentos na direção de conflitos ou repressão da liberdade, pois aos poucos
também se suprimem os direitos alheios. Como bem descreveu Eduardo Alves da Costa:
“Na primeira noite eles se
aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda
noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos
nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos
a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos
dizer nada.”
Espero sinceramente serem estas observações exageradas, sobre
um processo que não trará frutos podres; mas nunca é demais lutar por um mundo
em que não seja preciso torcer para que a realidade vá contra as evidências.