10/08/2018

O "estupra, mas não mata" corporativo


Quando pego ônibus gosto de ouvir alguma coisa – ou música ou a conversa alheia, experiência que só o transporte público no Brasil proporciona: não apenas é possível ouvir o que as pessoas falam, como muitas vezes elas fazem questão de falar alto para que o público possa apreciar.
A partir de uma série de conversas ouvidas em diferentes linhas de coletivo, notei que é cada vez mais frequente o “estupra, mas não mata” corporativo.  Parece que é visto como inteligência a ação implícita, a intenção simbolizada, mas não passível de condenação; a disputa de poder por palavras e gestos sem deixar nada muito claro a ponto de exigir uma resolução prática. Prejudicar sem destruir, fazer sentir mal sem ofender, plagiar sem tirar o mérito, sabotar sem dar chance de se defender.
Parece que existe uma etiqueta no mundo corporativo – perdoem minha inocência se sempre existiu – que reza que você pode até ser percebido pelos seus inimigos, mas não pode dar elementos para ser acusado. Já ouvi manifestações emocionadas de pessoas contando como perceberam a angústia no outro durante uma reunião; pessoas regozijando-se não ao conseguir o que queriam, mas em perceber que alguém foi ferido por isso – mas veja bem: ferido, não morto; prejudicado, não demitido. Humilhado talvez, mas não de forma clara, a ponto do autor poder ser condenado pelo ato de humilhação.
Já ouvi tons de voz que expressavam extremo orgulho ao contar quão humilhante foi a própria fala para outra pessoa, quão inferior ela pareceu aos olhos dos outros, quanto sofrimento ela era capaz de causar do alto da sua esperteza. E não foi delírio de um falante, os ouvintes regozijavam-se também, compartilhavam da percepção de que isso é o ideal, de que isso é aceitável no mundo corporativo.
A meu ver, esse é o espírito do famoso “estupra, mas não mata”: é a ideia de que é legítimo, e até mesmo esperado que se provoquem danos íntimos nas pessoas sem, no entanto sair com as mãos sujas de sangue. Arrisco estender a metáfora e dizer que nesses casos, é comum atribuir-se a culpa à vítima: “ele não foi humilhado por mim, mas pela própria incompetência”; “ela deixou isso acontecer, aliás, pediu para que acontecesse”; “ele se achava esperto, mas recebeu uma lição”.
É claro que a violência de um estupro é de natureza e intensidade completamente diferentes, mas fico me perguntando se, como insinua Freud em “o mal estar da civilização”, isso não seria uma forma das pessoas exercerem a violência que a sociedade tanto reprime, mas que o íntimo quer botar pra fora. Tem gente mais cara de pau, que culpa até as vítimas de estupro, com o “ela estava vestindo uma blusa muito chamativa”; “ela pegou o caminho mais perigoso”; “ela mexeu com as pessoas erradas e aprendeu a lição”. Tem gente menos cara de pau que encontra terreno livre pra exercer a maldade no trabalho.
Não importa o que as pessoas sentem, não importa o merecimento ou o objetivo final do trabalho – importa conseguir o que se quer à custa de outros sem, no entanto, expor-se – isso não seria admirável. O que é valorizado aqui não é a ética ou o profissionalismo, mas a esperteza em forma de pequenos gestos, palavras, enfim, essas pequenas coisas que podem destruir um íntimo se aplicadas com frequência suficiente. E no final, se a pessoa morrer, é porque era fraca, não merecia estar ali, só os fortes sobrevivem – e todos querem ser os fortes.