Quando pego ônibus gosto de ouvir
alguma coisa – ou música ou a conversa alheia, experiência que só o transporte
público no Brasil proporciona: não apenas é possível ouvir o que as pessoas
falam, como muitas vezes elas fazem questão de falar alto para que o público
possa apreciar.
A partir de uma série de conversas
ouvidas em diferentes linhas de coletivo, notei que é cada vez mais frequente o
“estupra, mas não mata” corporativo. Parece que é visto
como inteligência a ação implícita, a intenção simbolizada, mas não passível
de condenação; a disputa de poder por palavras e gestos sem deixar nada muito
claro a ponto de exigir uma resolução prática. Prejudicar sem destruir, fazer
sentir mal sem ofender, plagiar sem tirar o mérito, sabotar sem dar chance de
se defender.
Parece que existe uma etiqueta no
mundo corporativo – perdoem minha inocência se sempre existiu – que reza que
você pode até ser percebido pelos seus inimigos, mas não pode
dar elementos para ser acusado. Já ouvi manifestações emocionadas de pessoas
contando como perceberam a angústia no outro durante uma reunião; pessoas
regozijando-se não ao conseguir o que queriam, mas em
perceber que alguém foi ferido por isso – mas veja bem:
ferido, não morto; prejudicado, não demitido. Humilhado
talvez, mas não de forma clara, a ponto do autor poder ser
condenado pelo ato de humilhação.
Já ouvi tons de voz que expressavam
extremo orgulho ao contar quão humilhante foi a própria fala para outra pessoa,
quão inferior ela pareceu aos olhos dos outros, quanto sofrimento ela era capaz
de causar do alto da sua esperteza. E não foi delírio de um falante, os
ouvintes regozijavam-se também, compartilhavam da percepção de que isso é o
ideal, de que isso é aceitável no mundo corporativo.
A meu ver, esse é o espírito do
famoso “estupra, mas não mata”: é a ideia de que é legítimo, e
até mesmo esperado que se provoquem danos íntimos nas pessoas sem, no entanto
sair com as mãos sujas de sangue. Arrisco estender a metáfora e dizer que nesses
casos, é comum atribuir-se a culpa à vítima: “ele não foi humilhado
por mim, mas pela própria incompetência”; “ela deixou isso acontecer,
aliás, pediu para que acontecesse”; “ele se achava esperto, mas recebeu
uma lição”.
É claro que a violência de um estupro
é de natureza e intensidade completamente diferentes, mas fico me perguntando
se, como insinua Freud em “o mal estar da civilização”, isso não seria uma
forma das pessoas exercerem a violência que a sociedade tanto reprime, mas que o
íntimo quer botar pra fora. Tem gente mais cara de pau, que culpa até as
vítimas de estupro, com o “ela estava vestindo uma blusa muito chamativa”; “ela
pegou o caminho mais perigoso”; “ela mexeu com as pessoas erradas e aprendeu a
lição”. Tem gente menos cara de pau que encontra terreno livre pra exercer a
maldade no trabalho.
Não importa o que as pessoas
sentem, não importa o merecimento ou o objetivo final do trabalho –
importa conseguir o que se quer à custa de outros sem, no entanto, expor-se –
isso não seria admirável. O que é valorizado aqui não é a
ética ou o profissionalismo, mas a esperteza em forma de pequenos
gestos, palavras, enfim, essas pequenas coisas que podem destruir um íntimo se
aplicadas com frequência suficiente. E no final, se a pessoa morrer, é porque
era fraca, não merecia estar ali, só os fortes sobrevivem – e todos querem ser
os fortes.