31/10/2017

Fé nas pessoas

A desilusão no ser humano é cult, é pop, é a resposta mais fácil para o show de horrores com que somos bombardeados todos os dias. Ainda assim, teimo em acreditar nas pessoas. Teimo em admirar aqueles que, apesar do quanto a humanidade já foi amaldiçoada e culpada por tudo, ainda mantêm seu caráter e sua persistência por um mundo melhor, nem que esse mundo seja somente o seu entorno, seu quadradinho, seu dia a dia. Teimo em parecer ridícula ao não entoar junto com a massa de juízes dessa humanidade da qual parecem nem fazer parte um hino de “não tem mais jeito”, de “ninguém quer mais saber” e do confortável “por que vou eu me preocupar com isso? ”
Teimo em acreditar que apesar do estímulo à malandragem, do gosto pelo conflito e da vontade de desistir, ainda haja o peso na consciência, o amadurecimento e o respirar fundo para mais uma tentativa; que apesar das recompensas materiais e simbólicas à “esperteza”, os “certinhos” e os “quadrados” ainda sabem por que fazem o que fazem e não deixam sua ampla consciência se intimidar diante de abundantes mesquinharias.
Mesmo que isso me leve a muitas decepções, como já levou, tenho fé que omissos tomem coragem, que pilantras se envergonhem e que poderosos façam justiça quando lhes couber. No entanto, diferente de quem tem a fé como fim em si mesmo, sei que devo fazer minha parte para que essa esperança um dia se concretize. Sei que eu devo estimular os bons e apontar os ruins, apesar da doutrinação conformista que me manda ser modesta quanto ao que merece aplauso e discreta quanto ao que merece crítica. Desconfio até que essa defesa massiva da “humildade” seja uma forma de abafar quem ameaça a atenção dos juízes de torre de marfim sem feitos concretos.

Para manter a fé na humanidade como algo mais do que esperança vã, acredito no poder de mostrar com orgulho o que outros ou nós mesmos fazemos de bom; em fazer valer a esperança em nós e naqueles que merecem ser destacados; em colaborar para que reste aos pessimistas, aos preguiçosos e aos pilantras o esquecimento da história, como tropeços na nossa evolução.

24/10/2017

Divino conceito

Para além de verdades metafísicas, crenças e descrenças, proponho aqui uma análise do conceito de “deus” na comunicação cotidiana. Afinal, independente da religião, essa ideia carrega significados calcados pela cultura, pelo uso e pelo senso comum.
Quando alguém diz “meu deus!”, não é preciso perguntar que igreja a pessoa frequenta para entender seu sentido; quando expressa “se deus quiser”, não quer dizer que ignore todas as causalidades e somente espere algo de um ente sobrenatural em que acredite. Muitas vezes, não quer dizer nem que acredite em ente sobrenatural nenhum.
 A língua tem vida própria. Ela carrega consigo os significados que percebemos enquanto vivemos, mesmo que nunca tenhamos pegado em um dicionário para procurar as definições precisas das palavras. Por mais que alguns as evitem, expressões que contêm “deus” estão incorporadas à língua. O que buscarei argumentar é que essas expressões não só servem para expressar muito mais do que uma crença teísta, mas podem estar desvinculadas dela, e considero essa distinção fundamental para combater alguns preconceitos.
À primeira vista pode parecer estranho desvincular expressões com “deus” de religiões. Compreensível, a partir do momento em que a crença em deus(es) é o cerne da maioria delas. No entanto, basta um pouco mais de atenção para notar diferenças entre as expressões diárias e uma entidade cultuada por fiéis.
Comecemos por analisar alguns aspectos do deus como entidade sobrenatural: concluir o que ou quem é deus para uma igreja requer estudo, discussão e consultas a documentos fundamentais da sua história – coisa que leva tempo e atenção. Esse deus (ou deuses, no caso de religiões politeístas) seria algo exterior e anterior ao homem, não sendo possível, portanto, que a sua definição varie de pessoa para pessoa – a não ser que estejamos falando de alguma espécie de deus camaleão.
Em geral, existe uma definição, dada pela instituição religiosa que o cultua, sobre o que é esse deus. Mesmo que às vezes seja necessário estudar documentos, rever conceitos e discutir convenções, essa definição não é maleável à imaginação de cada um que se refere a ele, ou então ele não é exterior, e sim fruto da imaginação de cada um. Quando surge polêmica em torno do que é a entidade, aqueles identificados como qualificados para tal se reúnem, discutem, estudam e tentam chegar a uma conclusão. Quando existe dificuldade de entendimento sobre o que é esse deus, é necessário consultar guias, documentos e outros elementos da religião que permitam uma melhor compreensão.
Já o “deus” das expressões cotidianas não exige estudo religioso para entender o que significa dentro das expressões que a contém. Mesmo ateus e agnósticos sabem e chegam a utilizar expressões como “ai meu deus” ou “graças a deus” sem precisar discutir a definição disso com ninguém. Mesmo que um umbandista esteja falando com um evangélico, o significado de “ai meu deus” não precisa ser debatido para ser compreendido.
 Também diferente do deus da religião, não falamos aqui da evocação de um ente exterior ao homem e não sujeito a variações individuais. As expressões são utilizadas livremente, por qualquer pessoa, variando de acordo com o contexto. É possível, por exemplo, que uma pessoa diga que “graças a deus a festa acabou” e que outra diga “graças a deus a festa continuou”, sobre a mesma festa, sem entrar em conflito sobre o que algum deus realmente quis a respeito da festa em questão.
É, portanto, uma ideia que expressa o que o interlocutor está querendo dizer, não a suposta vontade de uma entidade exterior. Outra vez na direção oposta do deus-entidade, não há longas discussões acerca da existência ou da natureza do deus presente nessas frases, e ninguém parece realmente se interessar em entrar nessa questão. No fundo, não é a natureza da palavra que dá o sentido ao que se está expressando; é a expressão como um todo.
Tenho consciência de que uma análise mais adequada poderia ser feita por um linguista, com as ferramentas e métodos adequados para explicar essas diferenças. Mas tenho consciência também de que primeiro é necessário apresentar a questão e então torcer para que estudiosos da língua sem intenção de favorecimento religioso vão mais a fundo nela.
Sobre o deus-entidade já temos bastante fórum, instituições e mesmo faculdades para dissecar a questão. O segundo (o deus-conceito) é que me parece precisar de um pouco mais de luz, inclusive para parar de ser usado como argumento de discussões metafísicas imaturas. Assim, olhemos um pouco mais de perto algumas expressões populares, que podem nos dar pistas do que esse conceito diz:
“Deus me livre”, “se deus quiser”, “graças a deus”, “vá com deus” ou “ai meu deus”: são todos termos que contém uma conotação positiva, uma subjetividade carregada de valor, seja o desejo de livrar-se de algum mal, uma esperança de que algo bom aconteça, uma sensação de satisfação ou a busca de apoio em algo além de si. Essas ideias podem transmitir a ideia de que quem está conectado a “deus” tem boas intenções, espera coisas boas, evita as ruins. Poderíamos dizer, então, que a palavra “deus” vinculada ao senso comum ajuda a expressar sentimentos como esperança, solidariedade e proteção.
Outro fenômeno bastante particular do uso do conceito no cotidiano são as atribuições de autoria. Quando alguém conclui que “deus” quis alguma coisa, não quer dizer que essa pessoa tenha parado, rezado e consultado alguém sobre isso. Quando alguém diz que “deus” quis algo, essa é uma dedução própria, instantânea. No mais das vezes, as pessoas atribuem a esse “deus” desejos, decisões, acontecimentos e resultados para o que elas próprias veem, analisam e concluem. Só que buscam manter a conotação valorativa da ideia, a relação com o que o conceito exprime: solidariedade, conforto, proteção e bons sentimentos.
Aparentemente, o significado que o senso comum atribui à palavra é muito mais preservado do que a coerência com alguma crença religiosa. Se uma pessoa morre, “foi a vontade de deus”; se uma pessoa vive, “foi graças a deus”; se eu não tenho certeza de algo, mas quero que aconteça, “se deus quiser”. São conclusões automáticas, respostas prontas a situações que se repetem. Ninguém consulta a vontade de algum ser sobrenatural antes de dizer. Cada um diz quando considera adequado ao uso da palavra, ao deus-conceito.
Tamanho é o entendimento coletivo de que esse conceito carrega valores humanitários que muitas pessoas, mesmo crentes, rejeitam definições religiosas que não concordam com esses conceitos cotidianos. Sem dar-se conta, elas criam “seu deus particular” a partir do senso comum, podendo atribuir-lhe posteriormente uma forma sobrenatural, ou buscá-la na religião. Nesse ponto, em que ambas as concepções se confundem, é fortalecida a crença religiosa, emprestando força dos valores cotidianos; e os rituais religiosos repetitivos e atemorizantes reforçam a crença “interior”, que na verdade é mais uma ideia interiorizada da linguagem e dos conceitos populares.
Uma forma de perceber como esses conceitos são desvinculados é observar situações em que eles divergem em sentido. Se um líder espiritual conclui, a partir de leituras e estudos, que seu deus tem aspectos não humanitários, é muito provável que os fiéis rejeitem a definição dele antes de mudar a “sua” concepção sobre deus. Se alguém mostra a um cristão que a Bíblia contém passagens descrevendo a crueldade divina, diversos argumentos serão construídos para negar o que lhes parece uma contradição: “seu” deus sendo amor, bem, paz, solidariedade, há algo errado com essa interpretação da Bíblia. No limite, há algo errado com a Bíblia, mas nunca com o que se pensa desse deus. Porque antes desse deus ser o deus da Bíblia, ele é o do senso comum, o dos valores cotidianos, o da consciência coletiva. Esse é mais forte. Forte a ponto de fazer com que a pessoa negue definições embasadas nos próprios textos religiosos.
O IBGE não se aprofunda, em suas divulgações, na questão do quanto as pessoas mudam de igreja, mas creio que o número de igrejas diferentes dentro da mesma religião seja um bom indicativo de como o aspecto mais permanente da crença não tem origem na igreja, sendo mais provável que dê origem a ela. Como estamos tratando do senso comum brasileiro, indicarei a multiplicidade de linhas dentro da religião cristã, que teve peso extraordinário na formação cultural — e conceitual — brasileira. Um estudo mais aprofundado poderia analisar o impacto de outras religiões nessa concepção, mas sua força numérica e sua influência na educação não se comparam à primeira.
Encontramos dentro do cristianismo quatro denominações: a igreja católica romana, a ortodoxa, o Cristianismo Exotérico e os protestantes.  Na igreja católica, que preza bastante pela unicidade e pelo número de fiéis registrados sob seu título, existem congregações com características muito diversas, muitas vezes opostas, como uma que paga salários aos padres e outra em que eles fazem voto de pobreza. Existem movimentos e correntes de pensamento que em muitos aspectos diferem mais entre si do que de outras denominações cristãs, como a Renovação Carismática em relação à Teologia da Libertação, por exemplo.
Já na denominação identificada como “protestante”, é sabido que novas igrejas são abertas muito frequentemente, mas o controle de quais e quantas são criadas parece não ser tão claro para classificar. Ainda assim, uma consulta básica à Wikipédia retorna mais de 70 igrejas sob essa denominação, o que certamente não abarca todas as portinhas que se abrem com nomes diferentes em nome dessa denominação religiosa.
Se o deus cristão é um só, a diversidade de igrejas sob essa religião indica que outros elementos têm grande importância na auto identificação da pessoa com uma igreja. Apesar de desconhecer um estudo sobre isso, não é difícil notar que muitas pessoas se desligam de igrejas ou mudam de denominação, mas afirmam sem pestanejar que mantém a crença em “seu deus”. Isso acontece bastante quando a linha de uma igreja é identificada pelo fiel como incoerente com seus valores, sua moral… Seu deus, em última instância.
Outro fato notável que reforça a secularidade do conceito é como ele é utilizado por famílias para resumir o que se espera de alguém. “Deus fica triste com isso”, “deus gosta daquilo”, “deus está vendo”, “deus sabe” são expressões muito usadas para moldar o caráter de uma criança, guiá-la no sentido que a família considera adequado. Os valores da família são transmitidos por meio da alusão a uma entidade sobrenatural que, teoricamente, concorda com todos eles. “Milagrosamente”, esse deus concorda com a visão de mundo de milhões de famílias com visões de mundo diferentes!
Ao deparar-se com uma igreja que vai contra seus valores familiares, quem perde é a igreja. Se essa instituição transmite a ideia de que deus é algo identificado como ruim no que se aprendeu em casa, o que é taxado como ruim é ela, jamais deus, pois independente dos comportamentos ensinados, a ideia de “deus” é a referência para o que é bom, certo, desejável – de acordo consigo mesmo, de acordo com o que se aprendeu em casa ou se desenvolveu posteriormente – é uma ideia plástica também.
É isso o que se aprende com a linguagem, é isso o que as interações sociais reafirmam a cada uso da palavra e acredito que, no fundo, é isso o que mais importa às pessoas. Isso, no entanto, faz com que seja muito difícil para uma pessoa que crê em um deus-entidade separar religião de moral. Na medida em que a pessoa não faz a distinção entre deus-entidade (religião) e deus-conceito (opinião), ela acredita que o deus-entidade é a fonte primeira de tudo o que é positivo, e que nenhuma distinção entre metafísica e moralidade parece necessária. Um leva ao outro e se confunde com ele.
O problema dessa não dissociação é que a partir do momento em que uma pessoa se declara ateia, ela pode ser automaticamente vista como contrária não apenas à crença em uma divindade, mas também a esses nobres sentimentos que carregam seu nome: proteção, esperança, solidariedade e mesmo o amor – “coisa de deus”. E isso acontece muito. Se não há a dissociação entre a ideia de bem e a ideia de deus, quem “nega a deus” é identificado como quem nega qualquer referência que a pessoa tenha de bem. Não espanta, assim, a aceitação por um grande público das afirmações do apresentador Datena relacionando ateísmo a criminalidade. Mesmo que a maioria das pessoas nunca tenha tido problema algum com ateus, elas se sentem qualificadas para julgá-los a partir do que o conceito de deus representa para elas, porque nunca tentaram distinguir as coisas.
Diante da confusão, há ateus que incentivam o desuso da palavra, para que os sentimentos positivos sejam sempre expressos de forma religiosamente neutra. Temo que isso, no entanto, não seja tão efetivo numa sociedade majoritariamente teísta, que vai continuar disseminando o contrário. Além disso, como bem aponta Durkheim, os fatos sociais exercem uma pressão muito grande sobre a coletividade, e em especial sobre quem tenta contrariá-los, e não é difícil perceber que o deus-conceito é uma ideia com características de um fato social forte. Existem elementos importantes envolvidos nas expressões usadas, que mantém seu significado mesmo que um pequeno grupo resolva não usá-los.  Evitar essas expressões tende a ter mais efeito nos indivíduos que tentam contrariar a lógica coletiva do que na lógica em si – a própria resistência tem seu significado implícito no conceito, que nesse caso, não é a neutralidade valorativa, mas oposição aos valores carregados no conceito.
Ao me despedir de alguém dizendo “vá com deus”, eu manifesto quão preocupado estou com essa pessoa; ao dizer “deus te abençoe”, a senhorinha que carrega as definições de moralidade da casa manifesta a estima que tem por alguém; a expressão “está nas mãos de deus” quer dizer que, mesmo não havendo mais nada a fazer por alguém, meu sentimento é de desejo que algo bom ainda aconteça, reforçando a esperança em uma positividade abstrata que interfere no mundo.
Mesmo ao fazer uma oração por uma pessoa que não acredita nos efeitos dela, eu me sentirei bem, a partir do momento em que a reza, o deus e tudo o que me ensinaram que é valoroso está sendo associado ao meu caráter. Afirmar e reafirmar o conceito de deus é uma ótima forma de fazer crer, para mim e para os outros, que eu sou uma pessoa de boa índole. Quem não faz isso, antes de ser identificado como um militante da distinção entre religião e moralidade, é identificado como alguém contrário aos valores incutidos nessas representações.
Organizações identificadas como ateístas vêm tentando com muito esforço explicar que uma coisa é diferente da outra, o que é admirável; mas com certeza é precisa muita paciência para lidar com algo tão enraizado e entender que qualquer pequena mudança acontecerá em longo prazo. Parte dessa mudança é o entendimento das origens do preconceito, que nem sempre são a intolerância ou o mau caráter de quem mistura as coisas, mas podem ser a falta de uma reflexão mais cuidadosa sobre conceitos que absorvemos e reproduzimos sem nos darmos conta do que podem provocar.


17/10/2017

Frases feitas

Dia 1: Lute pelos seus direitos, não se aliene e não se conforme!
Dia 2: Seja humilde, queira menos, não reclame da realidade que tem.
É possível lutarmos pra que a realidade melhore quando somos constantemente alvejados por acusações de que reclamar é ser ingrato, querer mais é vaidade, não se conformar é querer demais?
Frases feitas podem ser belas, inspiradoras e fazer o maior sentido se nos esforçarmos para associá-las a situações particulares. Mas racionalismo é ir um pouco além, analisando se faz mesmo sentido em um contexto mais amplo, se é coerente com outras coisas que defendemos, que queremos e que praticamos.
De que vale levantar uma bandeira por melhores condições de trabalho quando você diz ao seu colega que ele não deveria reclamar do que tem? De que vale criticar a opressão capitalista quando você dissemina a lógica do mercado como algo que, mais do que inevitável, deve ser interiorizado?

Frases feitas são quase um horóscopo de revista de segunda: podem ter a ver com o que você está vivendo, você consegue até achar alguma situação da sua vida que se relacione ao assunto, mas cuidado ao basear todo o seu pensamento na sua aparente profundidade.

03/10/2017

Crítica e autocrítica

Às vezes é importante perguntar-se se a sua crítica não te cega. Já vi inúmeros exemplos de pessoas que ignoram o sentido, a intenção ou o argumento principal de outra porque no meio do discurso havia uma vírgula que podia ser atacada.
Perdemos oportunidades valiosas de crescer quando tapamos o ouvido ao que as pessoas têm a dizer em nome do "mas": "mas você poderia ter feito mais do que fez”; “mas o seu argumento teria muito mais valor se abrangesse mais coisas”; “mas isso o que você disse no meio do seu tratado de filosofia é uma metáfora que tem um defeito”.

Cabe se perguntar: a crítica que eu vou fazer é realmente relevante para o que está em jogo, ou eu apenas estou tentando tirar a relevância da ideia do outro para ganhar a discussão?