05/05/2010

Se ao menos nossos magistrados lessem Hannah Arendt...

"Tortura, por que não?

Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

O motoboy Eduardo Pinheiro dos Santos nasceu um ano depois da promulgação da lei da Anistia no Brasil, de 1979. Aos 30 anos, talvez sem conhecer o fato de que aqui, a redemocratização custou à sociedade o preço do perdão aos agentes do Estado que torturaram, assassinaram e fizeram desaparecer os corpos de opositores da ditadura, Pinheiro foi espancado seguidas vezes, até a morte, por um grupo de 12 policiais militares com os quais teve o azar de se desentender a respeito do singelo furto de uma bicicleta. Treze dias depois do crime, a mãe do rapaz recebeu um pedido de desculpas assinado pelo comandante-geral da PM. Disse então aos jornais que perdoa os assassinos de seu filho. Perdoa antes do julgamento. Perdoa porque tem bom coração. O assassinato de Pinheiro é mais uma prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país tendem a se repetir. Em infeliz conluio com a passividade, perdão, bondade geral.

Encararemos os fatos: a sociedade brasileira não está nem aí para a tortura cometida no País, tanto faz se no passado ou no presente. Pouca gente se manifestou a favor da iniciativa das famílias Teles e Merlino, que tentam condenar o coronel Ustra, reconhecido torturador de seus familiares e de outros opositores do regime militar. Em 2008, quando o ministro da Justiça Tarso Genro e o secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi propuseram que se reabrisse no Brasil o debate a respeito da (não) punição aos agentes da repressão que torturaram prisioneiros durante a ditadura, as cartas de leitores nos principais jornais do País foram, na maioria, assustadoras: os que queriam apurar os crimes foram acusados de ressentidos, vingativos, passadistas. A culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado: quem não deve não teme; quem tomou, mereceu, etc. A depender de alguns compatriotas, estaria instaurada a punição preventiva no País. Julgamento sumário e pena de morte para quem, no futuro, faria do Brasil um país comunista. Faltou completar a apologia dos crimes de Estado dizendo que os torturadores eram bravos agentes da Lei em defesa da democracia. Replico os argumentos de civis, leitores de jornais. A reação militar, é claro, foi ainda pior. "Que medo vocês (eles) têm de nós."

No dia em que escrevo, o ministro Eros Graus votou contra a proposta da OAB, de revisão da Lei da Anistia no que toca à impunidade dos torturadores. Para o relator do STF, a lei não deve ser revista. Os torturadores não serão julgados. O argumento de que a nossa anistia foi "bilateral" omite a grotesca desproporção entre as forças que lutavam contra a ditadura (inclusive os que escolheram a via da luta armada) e o aparato repressivo dos governos militares. Os prisioneiros torturados não foram mortos em combate. O ministro, assim como a Advocacia Geral da União e os principais candidatos à Presidência da República sabem que a tortura é crime contra a humanidade, não anistiável pela nossa lei de 1979. Mas somos um povo tão bom. Não levamos as coisas a ferro e fogo como nossos vizinhos argentinos, chilenos, uruguaios. Fomos o único país, entre as ferozes ditaduras latino-americanas dos anos 60 e 70, que não julgou seus generais nem seus torturadores. Aqui morrem todos de pija mas em apartamentos de frente para o mar, com a consciência do dever cumprido. A pesquisadora norte-americana Kathrin Sikking revelou que no Brasil, à diferença de outros países da América latina, a polícia mata mais hoje, em plena democracia, do que no período militar. Mata porque pode matar. Mata porque nós continuamos a dizer tudo bem.

Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje, passivos e horrorizados. Doença grave, doença crônica contra a qual a democracia só conseguiu imunizar os filhos da classe média e alta, nunca os filhos dos pobres. Um traço muito persistente de nossa cultura, dizem os conformados. Preço a pagar pelas vantagens da cordialidade brasileira. "Sabe, no fundo eu sou um sentimental (...). Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente, chora." (Chico Buarque e Ruy Guerra).

Pouca gente parece perceber que a violência policial prosseguiu e cresceu no País porque nós consentimos - desde que só vitime os sem-cidadania, digo: os pobres. O Brasil é passadista, sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para terminar de vez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É passadista porque teme romper com seu passado. A complacência e o descaso com a política nos impedem de seguir frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivência silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, dentro do nosso Estado frouxamente democratizado. "

7 comentários:

  1. A violência policial de hoje não é a mesma coisa que a tortura da ditadura. Isso porque a tortura foi usada como instrumento de repressão do pluralismo político, enquanto que hoje a violência policial é instrumento de repressão apolitizado - ainda que deplorável e quase que exclusivamente "mirado" em homens negros, pobres, das grandes cidades.

    Ainda assim, a diferença é importante o suficiente para que não possa ser ignorada: a tortura da ditadura foi encerrada com a redemocratização, pois sua razão de ser deixou de existir.

    Qual é a razão de ser da violência policial de hoje? Crime organizado? Baixos salários? Falta de educação? Fiscalização ineficiente?

    Claramente, a solução para esse problema passa por uma qualificação e aprimoramento profundos e contínuos de nosso sistema educacional. O cidadão educado, mesmo que pobre, tem mais informações para lutar contra tais excessos.

    Enfim, o problema da violência policial de hoje não é um problema ditatorial - exceto em casos isolados. A maior contribuição para a estatística da violência policial é motivada pela corrupção, por fatores sociais, pessoais ou psicológicos.

    De modo que afirmar que a violência de hoje e a tortura de ontem se equivalem é um instrumento retórico interessante, que, me parece, inflamaria a muitos a debaterem o assunto. Porém, colocados os pingos nos is, é uma afirmação falsa.

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  2. O que levou a uma e a outra difere. Mas o fato de que existe uma conivência ampla com a violência é comum. Na ditadura como hoje, existem os que temem se opor a qualquer autoridade, os que acham que serão bons moços se defenderem a ordem policial, independente dos crimes que estejam cometendo.
    A questão aqui é a impunidade consentida, que se perpetua caso não nos manifestemos.
    Coloquei Hannah Arendt como referência justamente por isso: ela lembra que se considerarmos atrocidades como o holocausto "coisa do passado", anulamos a reflexão e o debate a respeito e abrimos portas para que isso se repita.
    Hoje a violência consentida se repete de forma disseminada e por motivos diversos. É uma porta aberta para que se repita outra ditadura - a falta de oposição.

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  3. Pois bem, não concordo ipsis literis com suas idéias, mas apenas para aprofundar a discussão, vamos supor que concorde.

    Me parece que para influir decisivamente nessa questão, só vale a pena investir pesadamente na educação, e dessa maneira minimizar o problema daqui a vinte anos.

    Por enquanto, só podemos torcer para que não tenhamos uma crise braba e um líder populista idolatrado pelas massas ao mesmo tempo.

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  4. Por que não considerar a educação não formal, a educação de adultos, o debate de ideias, considerar a capacidade de mudança de visão de pessoas já formalmente "educadas"?

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  5. Bom, se uma pessoa foi formalmente educada e ainda assim se sente confortável na conivência com a violência policial, eu diria que ou sua educação foi essencialmente falha ou essa pessoa tem algum problema emocional ou de inteligência.

    Mas veja bem: nós que tivemos uma educação de qualidade razoável aqui no Brasil ainda somos a minoria, e nesta situação, caberia a nós encabeçar e dar o exemplo de luta contra a violência policial.

    E contra a fome.

    E contra o machismo.

    E contra a homofobia.

    E contra o imperialismo.

    E contro o consumismo.

    E enfim... É mais racional lutarmos todos com unhas e dentes pela educação, pois somente a melhoria da educação irá influir decisivamente para que daqui a algumas décadas as pessoas que tenham tido educação de qualidade sejam a maioria.

    Agora, não me tome por fatalista ou fundamentalista. Entendo perfeitamente que podemos lutar com relação a tudo, em especial, se escolhermos bem nossas batalhas, iremos focar tempo/trabalho naqueles pontos que forem mais vulneráveis a cada momento, por exemplo, em menos de duas semanas, dois motoboys foram mortos de maneira em que suspeita-se que policiais estejam envolvidos.

    Me parece que este é um momento em que a mídia está sedenta por fazer-se de portadora de indignação contra essa violência, e tal artifício seria útil para dar um pequeno golpe contra essa situação.

    Então sim, considero a educação de adultos ou o simples debate - em especial, com pessoas que eu ainda não sei se estão atentas a esses problemas - algo útil e que contribui efetivamente.

    Entretanto, a luta pela educação é uma luta que produz lutadores. E esta peculiaridade me faz pensar que aprimorar a educação é o ponto nevrálgico da luta que empreendemos.

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  6. Sim, acho que concordamos a partir de uma aparente discordância. Educação, focada e/ou amplida, é uma arma para promover posturas mais humanas.

    Beijo

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  7. Do PNDH-3: "A memória histórica é componente fundamental na construção da identidade social e cultural de um povo e na formulação de pactos que assegurem a não-repetição de violações de Direitos Humanos, rotineiras em todas as ditaduras, de qualquer lugar do planeta. Nesse sentido, afirmar a importância da memória e da verdade como princípios históricos dos Direitos Humanos é o conteúdo central da proposta. Jogar luz sobre a repressão política do ciclo ditatorial, refletir com maturidade sobre as violações de Direitos Humanos e promover as necessárias reparações ocorridas durante aquele período são imperativos de um país que vem comprovando sua opção definitiva pela democracia."

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