11/10/2010

Proibida a maldade




A ideia é tentadora, mas sinto dizer: não é a criminalização do mal que vai fazer com que ele deixe de existir.
Muita gente tem a falsa impressão de que a lei cuidará de tudo, mesmo sabendo que as leis são burladas o tempo todo, até mesmo pelos cidadãos considerados mais honestos.
Imagine você um lugar em que a polícia fiscalizasse todo o cumprimento da lei, inclusive as de trânsito e as mais desconhecidas da população. Além de inviável, inexistente. Agora volte à realidade, em que nem leis importantes são bem fiscalizadas, e acrescente a criminalização do uso de drogas, da irresponsabilidade no trânsito, de crimes cometidos por menores de idade, da falta de ética e de tudo o que gostaríamos que não existisse.
Adiantaria? O consumo de drogas acabaria? As pessoas deixariam de passar o pé nos colegas pra conseguir vantagens particulares? É claro que não. Ao vislumbrar a possibilidade de um acirramento em qualquer fiscalização as pessoas já começam em argumentos, recursos e mesmo em propinas. Quem nunca ouviu que radares são indústrias de multas, que a lei só é aplicada a quem paga impostos e toda sorte de lugar-comum incorporado ao discurso de quem não quer lembrar que está cometendo infrações?
O país precisa melhorar muito, e existem problemas que não são sanados com um ou dois projetos sociais, muito menos com uma ou outra proibição. Muitos problemas precisam de ações múltiplas e integradas, em especial quando estão generalizados há muito tempo, como a desigualdade social e a violência. Para isso existem estudos, instituições, congressos e militância por educação de qualidade. Para isso existe uma cultura que vai além do pão e circo, que insiste em tentar mudar a realidade continuamente.
Agora, quem não consegue entender isso acha que chamando a polícia os problemas do mundo desaparecem; acha que proibindo o aborto ele deixará de ser realizado; só falta achar que proibindo o câncer ele deixará de matar pessoas.
Não queremos uma sociedade regida pela polícia. A polícia é uma entre tantas instituições, com funções definidas. Não quero acreditar que chegamos a tal ponto em que as relações sociais estão desacreditadas a ponto de tudo precisar de algemas. Se um dia isso acontecer, vamos fechar as escolas e abrir delegacias pra colocar nossos filhos assim que começarem a pensar em travessuras.

4 comentários:

  1. Mas vale o princípio de que o que não é ilegal é permitido, correto? De modo que se algo não é crime, significa que "tudo bem" de se fazer. É por esse motivo tortuoso que muitos confundem legalidade com moralidade, e crêem que tudo que é imoral deve ser criminalizado.

    Um estado efetivamente laico é aquele em que a liberdade de uma pessoa não é limitada pelos valores morais de outra - se eu quero abortar e isso é um pecado inominável para você, você que se dane, o aborto é um direito de todos e o fato de isso escandalizar alguns não deve ser o motivo de criminalizar a prática.

    O mesmo vale para drogas, prostituição, todo tipo de prática sexual, etc.

    ResponderExcluir
  2. E por que será que o PNDH-3 está sendo tão condenado? Tem ideia?

    ResponderExcluir
  3. Gostei muito da argumentação, embora tenha lido a postagem com atraso. Sobre essa mania brasileira de resolver tudo por meio de leis (infiscalizáveis), uma boa análise é feita por Sérgio Buarque de Hollanda, no finalzinho do "Raízes do Brasil", lembra? (Queria citar algum trecho, mas não estou localizando o livro agora... rs.)

    Sobre o PNDH-3, acredito que sua condenação se deve exatamente à moralidade mencionada pelo Renato, que ainda impera no Brasil. E claro que essa moralidade é inseparável da hipocrisia tratada em sua postagem, já que ela só serve para "os outros"; cada brasileiro se vê no direito pessoal de burlar a lei e a moral, se assim lhe convir.

    ResponderExcluir
  4. "Segundo informações da Organização Mundial de Saúde (OMS), 17% dos abortos clandestinos são realizados na América Latina. E, segundo dados do Ministério da Saúde, "o aborto inseguro é responsável por 9,5% das mortes maternas diretamente relacionadas à gravidez, sendo a quarta causa de óbito materno.
    Ainda, segundo informações do Ministério da Saúde, a curetagem (raspagem uterina feita após abortos) é o segundo procedimento obstétrico mais praticado no Sistema Único de Saúde (SUS) superado apenas pelos partos."
    Bem, como é possível notar, o aborto é, sobretudo, uma questão de saúde pública e não simplesmente uma questão religiosa."
    Ádima Domingues da Rosa - Aborto: uma questão de saúde - in Sociologia, Ciência e Vida, anoIII, número 24, pg. 62 e 63

    Enquanto acharmos que proibir uma prática é suficiente para acabar com ela, insistirmos em fechar os olhos para a necessidade de encarar o assunto de frente e promover conscientização além de tabus, seremos co-responsáveis pela morte de muitas mulheres.

    ResponderExcluir

Obrigada por compartilhar